Bemdito

Poço da Draga: uma fotografia sem pressa

Especial Poço da Draga 115 anos | Imagens, histórias e nomes de quem vive nesse território da capital cearense
POR Ivna Girão

Especial Poço da Draga 115 anos | Imagens, histórias e nomes de quem vive nesse território da capital cearense

Por Ivna Girão
ivnanilton@gmail.com

A vista alcança o mar, mas o cheiro do café chama antes para um bom papo na calçada, na sombra, com o vento revirando os cabelos. O oceano pode esperar um pouco, a xícara não, vai esfriar. A calçada é estreita, mas o coração é grande. Dona Marlene, rezadeira, veste o melhor vestido, pergunta se os pés vão aparecer na fotografia, escolhe uma sandália nova. Um panô vermelho, e a fantasia vai começar: não é dia de circo, mas o encanto está no ar. Uma caixinha preta num tripé e um rosto escondido embaixo do pano. O que será? É dia de sessão de lambe-lambe no Poço da Draga.

No dia 26 de maio, o Poço da Draga completa 115 anos. Uma comunidade que, vizinha ao mar da Praia de Iracema, vê, diariamente, seu horizonte desapontado. Bela e sofrida, o território é palco de uma Fortaleza de contrastes e disputas: a miséria e a fome, a batalha para resistir, o trator que ameaça a remoção, a violência, a falta de planejamento urbano. Um cotidiano duro que se afaga quando encontra, toda faceira, Dona Marlene arrumada para ser fotografada. O Poço da Draga parou para festejar a Dragaleria, um projeto de fotografia e memória a partir das imagens em lambe-lambe de Luiz Santos. 

Dragaleria é fruto de uma aproximação entre Luiz Santos, retratista fotográfico adepto da técnica conhecida por lambe-lambe, e a comunidade Poço da Draga. Primeiramente, ocorreu uma residência artística em 2018. No final de 2020, Luiz teve aprovada uma proposta ao edital da Lei Aldir Blanc, da Prefeitura de Fortaleza. O argumento era de que se daria o fechamento da residência artística, mas é muito mais do que isso. O nome Dragaleria parece que caiu nas graças de uma turma de moradores que luta para que o lugar ocupe o lugar que lhe é devido na história da cidade”, diz o texto de apresentação. 

Tive o prazer de conhecer Luiz Santos. Em suas andanças pelo Poço, ele fez um pouso na Vivenda do Sossego, nossa casa, justo no dia do aniversário da minha mãe Ivone: ganhamos de presente um registro familiar em lambe-lambe e uma amizade. Com Luiz, aprendi vários saberes para além da fotografia – um ficou aqui, mesmo após a sua partida: o valor da calma, o valor de levar a vida com menos urgência.

Tal como se mexe um doce – se for muito rápido, ele embola, e se for muito lento, ele queima – o Lambe é do tempo da natureza, é foto feita como coisa lenta, é para sentar na calçada e esperar, esperar a luz entrar e o filme no papel queimar. Cada foto demora, um contraste com a pressa das selfies atuais. O bom disso é o papo esticado que se constrói até o retrato ser personificado. Como diz o mestre Chico Albuquerque, “a luz salva”. Com arte, a vida se acalma. 

E para celebrar os 115 anos do Poço, trago um convite para conhecer as fotos, as histórias e os nomes de quem vive nesse território. Cada imagem é um sopro de alegria, é a chance de ter ali, bem guardada, memórias que dão sentido e existência, que fazem da Fortaleza essa cidade que brilha e tem coragem, de homens e mulheres que carregam no corpo e no sorriso, nas rugas e no trabalho, a maior herança do nosso povo: a gana de viver.

O Poço é resistência, é renovação, é vigor, é banho de mar, é berço da bravura e da beleza de uma Capital que esquece seu passado e se perde no olhar pra frente. A Draga é uma galeria a céu aberto, é farol iluminado, é pulo da ponte para construir, na marra, novos horizontes, é o rezo de Dona Marlene e a foto afeto de Luiz Santos. Viva! 

Ivna Girão é jornalista e Coordenadora de Comunicação da SECULT. Está no Instagram.

Ivna Girão

Jornalista, historiadora e escritora, é coordenadora de comunicação da Secretaria de Cultura do Ceará.