Bemdito

Por que amar os vilões?

O que o conflito no Afeganistão nos revela sobre heróis, vilões e real politique
POR Simone Mayara

Os acontecimentos do último final de semana fizeram os olhos do mundo se virarem para Cabul, a capital do Afeganistão. Há duas semanas, o grupo terrorista Talibã vinha tomando as cidades do país, uma após a outra, até chegar à capital e tomá-la em algo próximo a 24 horas. Em seguida, entraram em cena os homens vestidos em trajes tribais na sala do presidente – que fugiu antes da chegada – e instalou-se o completo desespero da população, em cenas que lembram os filmes de apocalipse.

Mas é real. Apesar da má fé de quem achou por bem questionar. O desespero de um grupo específico também marcou as notícias: mulheres e meninas. O histórico desse segmento da população, sob o governo do grupo Talibã, é de total desrespeito e subjugação.

Notícias e análises – às vezes umas misturadas às outras – inundaram todas as formas de comunicação. Mas nesse ínterim, chamou a atenção a perda da noção de vilão. Melhor, o esforço para dar justificativa e perdão a quem figura facilmente como vilão. Não há qualquer objetivo de apontar heróis, mas pôs uma pulga atrás da orelha o amor pelos vilões.

A pulga não é nova e já foi tema de discussões entre amigos. Eu tenho a teoria – totalmente desenvolvida em rodas de conversa e longe da academia – de que o problema começou com Darth Vader. Contar toda a sua história triste como forma de justificar o desejo de destruir o universo nunca me convenceu.

Mas que relação, né?

É isto: a vida imitou a arte e perdemos a noção de bem e mal, pois tudo é relativo. E aí retomo o Talibã, ou melhor: os absurdos que se seguiram às imagens de desespero. O grau de loucura, polarização e manipulação de informação fizeram aparecer explicações para a crueldade ou comparações esdrúxulas com a política brasileira.

A culpa foi posta no imperialismo, no capitalismo e, claro, no grande demônio do norte: os Estados Unidos. Já digitei isso antes em outra coluna e, sim, essa parece ser a resposta para todos os problemas do mundo. Não importa a pergunta, a resposta já está escolhida. Historicamente, o Afeganistão é chamado de “cemitério dos impérios” por uma razão. Ao longo da história, impérios tentaram ocupar a região, mas acabaram cedendo às questões internas do conjunto de tribos, que sabe se unir para combater o que vem de fora.

No contexto mais moderno, que nos traz ao conflito atual, inicialmente, foram os soviéticos a tentar estender seu poder, dominando o país por 10 anos. Os EUA armaram e treinaram milícias locais para a resistência. Real politique, cada um cuidando dos seus interesses.

Por alguma razão, o apego à resposta fácil e instrumentalizadora contra o grande capital passou a justificar as ações do Talibã. Pois é. O grupo que deu abrigo a Bin Laden em sua fuga, que tentou matar Malala, a mais nova Nobel da Paz da história, que ficou conhecida por seus esforços de manter meninas na escola. O grupo que hoje cobre imagens nas quais há mulheres pelas ruas de Cabul e garante que seus direitos serão respeitados dentro dos limites da lei do Islã.

Todos os absurdos e a carnificina perpetradas por anos, o dinheiro que sustenta a base da venda de drogas para o resto do mundo e a extorsão dos locais estão justificados pelo enquadramento na conta simples: quando se está ao lado “oprimido”, tudo vale. Em algum ponto, começamos a encontrar histórias tristes para fazer dos vilões palatáveis e vítimas. Veja que, nesta história, não é difícil apontar o vilão, mas não estamos tratando de heróis. 

O objetivo aqui é discorrer sobre isso: por que amar os vilões? A quem serve?E, por favor, aqui não falo do amor, o que tudo suporta, crê e perdoa. Estamos tratando de falácia em redes sociais. O mal da urgência, de criar fantasmas e lutar contra milhares de vilões, é perder o foco. Atualmente, só é possível criar fantasmas e aumentar a urgência dos problemas graças ao mundo criado no Ocidente.

A tão criticada base filosófica judaico-cristã criou o ponto comum de civilização na qual floresceu a democracia representativa. Cheia de defeitos, ainda é o melhor ambiente para se estar. E, ainda assim, buscamos justificar os erros de vilões de fora com argumentos vitimistas. Péssimo, pois há vítimas reais e essas não esperam justificativa, mas ajuda.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.