Precisávamos ver mulheres
No que nos tornamos, quando todas as possibilidades já estão representadas? O que constrói e revela, ao mundo, a nossa irrevogabilidade? Nossa perene vicissitude, nosso “ser” que é só nosso e de nenhum outro – o ser irrepetível, único, inefável?
A todos são dados a inconfundibilidade de uma voz, o espaço entre os olhos e ângulo formado entre esses e o nariz, os medos infantis que impulsionam fraquezas e atos desmedidos de desespero, mal disfarçados em coragem e ímpeto.
Mas, ao artista, é dado o divino condão de parir um estilo: Mary Shelley e Margaret, um dia, nasceram e, depois, se tornaram mais, como uma flor que fura o concreto e estica suas pétalas para fora da casca que a confinava. Mas, ao cientista, é dado o poder de manipular aquilo que, para muitos de nós, permanece em segredo, o dom de usar a inteligência humana para explorar o natural e complexo universo íntimo e último de tudo que nos cerca.
Entre os dias 21 e 25 de julho de 2020, as escolhas para a nossa terceira semana foram os filmes: Mary Shelley, Grandes Olhos e Estrelas além do tempo. Precisávamos ver mulheres na tela, suas histórias, suas verdades e dores, suas palavras, ciência e arte.
O que transforma um filme, entre tantos disponíveis, em uma obra especial, naquelas que não conseguimos tirar os olhos das imagens e que não conseguimos tirar da memória as sensações trazidas pelos personagens? A nossa identificação. A nossa verdade que se mistura e se contorce junto à montagem das cenas, aos diálogos que se transformam em palavras nossas e que, de tão repetidos – em voz alta ou como pano de fundo dos nossos pensamentos – compõem a verdade que acreditamos e, portanto, na verdade que somos.
Impossibilitada de assinar seu nome em suas crianças, a pintora se mudou, de dentro pra fora, e deu à luz a outros rostos, para, enfim, mostrar o seu próprio. Sufocada pelos poemas de ode à beleza escritos pelo marido poeta, que a ela dispensava só a indiferença, a escritora costurou com lápis o monstro feito de partes humanas, todas elas suas próprias peles, e a ele deu seu grito engasgado: eu existo e serei vista.
Confiantes de suas habilidades e extraordinária inteligência, as cientistas se mantiveram de pé e altivas, acordando e vivendo, dia após dia, sob a certeza de seus talentos e de seu brilhantismo que, mesmo sendo ofuscados, e levianamente minados por fora, não foram destruídos por dentro, em sua fonte primeira: a condição humana que nasce, não se sabe exatamente de onde, mas que aponta seus sonhos para as estrelas.
Suas obras, suas vidas, suas verdades e o que construíram, cada uma à sua terna e especial maneira, mas todas como mulheres neste mundo muito mais Yang do que Yin: tudo era exatamente aquilo que elas precisaram para ser.
E o que elas foram, e o que todas nós somos, são avisos: não se invisibiliza uma alma. Não se apaga uma mulher. Há o ser, em todas as suas formas, explodindo como feixes de luz e poeira estelar em todas as direções – às vezes brotando do chão, às vezes por outros poros, muitas vezes por outros olhos grandiosos que lhe deitam olha/atenção e olhar/respeito. Nascemos para ser – e o que é de ser não cessa.