Psicanálise e dinheiro
Apesar de a psicanálise ser mais acessível hoje do que algumas décadas atrás, ainda se pode perceber a presença marcante, nos espaços clínicos e de formação, de um público muito específico. Classe média e branco, ele detém capitais materiais e simbólicos que o posicionam em um lugar social de privilégio.
Por outro lado, para as populações periféricas localizadas no campo e nas favelas, o método terapêutico inventado por Freud continua ou tendo sua existência ignorada ou sendo percebido como algo muito distante de suas realidades. Lembro bem da vez em que, junto a colegas da Margem (coletivo de psicanalistas que desenvolve trabalho de clínica pública em Fortaleza), participei de uma roda de conversa no bairro periférico do Bom Jardim. O objetivo era bater um papo sobre sonhos. Depois de nos apresentarmos como psicanalistas, os/as participantes foram dizendo os nomes e as impressões que tinham a respeito da psicanálise. Uma das pessoas, uma mulher de mais ou menos cinquenta anos, afirmou o seguinte: “É aquela terapia que o povo faz nos consultórios chiques”.
Esse evento aconteceu em fevereiro de 2020, algumas semanas antes da pandemia. De lá para cá, o processo de precarização da vida se aprofundou radicalmente. A extinção dos direitos trabalhistas, o desemprego, a insegurança alimentar, o sucateamento dos serviços de saúde, junto ao racismo e à violência estatal impactaram profundamente pessoas periféricas e/ou em situação de vulnerabilidade social. No mesmo Bom Jardim, onde, desde 2019, desenvolvemos trabalho de escuta pelo Núcleo Bonja, em parceria com o CDVHS, houve aumento do perfil de pobreza, queda dos índices educacionais e da expectativa de vida, crescimento da violência e do uso abusivo de álcool entre a juventude.
Diante desse cenário e ao se levar em conta a necessidade de democratização do acesso à saúde mental no Brasil, torna-se central uma reflexão sobre o dinheiro na psicanálise, para além das posições instituídas sobre o tema. Pois observadas de um ponto de vista mais amplo, algumas delas podem acabar por reproduzir, inadvertidamente, privilégios estruturantes das relações sociais no país.
Não é incomum encontrar falas que tentam contornar a questão trazendo para as pessoas pobres a responsabilidade de criar as condições materiais de uma escuta. De acordo com esse pensamento, estas só poderiam ser dadas, no fim das contas, pela mudança da relação do paciente com o trabalho, como se tratar dos sintomas “individuais” fosse a chave para deslocar os sintomas “sociais” que o atravessam e o constituem. Com isso, reinstitui-se, sem qualquer fundamento na teoria psicanalítica, a separação entre sujeito e sociedade, com o resultado também de abraçar certo modelo privatista de prática clínica, ao desconsiderar sua função pública.
Segundo informações do DIIESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos), veiculadas em matéria no portal Exame, para garantir as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas, o salário-mínimo no Brasil deveria ser de R$ 5.900,00. Ou seja, quase cinco vezes maior que o valor atual, fixado em R$ 1.212,00 no início de 2022. Se levarmos em consideração o preço médio cobrado por sessão nos consultórios privados, comparecer a quatro sessões por mês, custaria ao/à trabalhador(a) comum praticamente metade de seus vencimentos, o que, na prática, torna difícil a consideração da clínica psicanalítica como um espaço para falar de suas angústias.
Em que pese a garantia do acesso universal à saúde, inclusive mental, ser de responsabilidade do Estado, o racismo estrutural, a violência de gênero, a desigualdade de classes e os males sociais que ela acarreta não devem ser desconsiderados por uma clínica eticamente voltada para as demandas do sujeito diante de seu sofrimento. Só para citar um exemplo, o luto vivenciado por mulheres negras e pobres pelos filhos — a priori elimináveis pela máquina necropolítica — vítimas do racismo e da guerra às drogas, tem produzido sintomas psíquicos graves nessa parcela da população, sem que haja espaços de escuta suficientes aos quais possam recorrer.
Com isso, não reivindico que sejam desconsideradas as reflexões metapsicológicas, desde Freud, sobre a importância do pagamento para o andamento da análise e sobre suas consequências transferenciais. O que está em jogo, na verdade, é que a perda, representada pelo pagamento, ou seja, a dívida que o sujeito assume para a entrada no simbólico, deve ser modulada com base em um conjunto de relações sociais com efeitos no real e, além disso, levar em conta outras possibilidades de simbolização, na qual o dinheiro se apresenta como uma das possibilidades, mas não a única.
Não se trata, portanto, apenas de garantir, teoricamente, o direito de o pobre fazer análise, mas sim oportunizar espaços para a escuta de sujeitos socialmente precarizados, para os quais uma passagem de ida e volta — o custo atual em Fortaleza é de R$ 7,80 — pode representar uma perda capaz de fazer o dinheiro cumprir sua função: metaforizar a falta implicada no desejo.