Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu
Uma carta emocionada, inspirada em Renato Russo e escrita para ser lida na cerimônia de amigos recém-casados, fala da saudade de quem me reensinou a amar
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
O texto desta semana para o Bemdito é em homenagem ao casal de amigos que se casaram nesta sexta-feira. Infelizmente, não pude ir pessoalmente abraçá-los. Layse e Thiago haviam se mudado de Belém para São Paulo, em fevereiro de 2018. Então, em homenagem ao casamento deles, registro aqui essa carta, escrita no dia em que se mudaram, na qual uso alguns versos do Renato Russo e a ele é destinada – seguindo a inspiração que o próprio Renato me deu quando li a carta que ele escreveu para si mesmo, como se tivesse sido escrita pelo seu próprio medo… Vale a pena lê-la, quem puder. Mas a minha carta se trata de uma mensagem com saudades, pedindo para que se lembrassem de mim, em São Paulo.
Mas só para avisar, Layse e Thiago voltarão a morar Belém neste ano, depois do casamento. Como eles trabalham com a saúde pública, retornarão por senso de responsabilidade e de dever de ajudar na guerra contra a pandemia que assola a Amazônia urbano-brasileira. Este seria o texto que eu iria ler na cerimônia deles, caso pudesse ter ido. É parte dele, na verdade. A outra parte ficará no não-dito mesmo, como muitas coisas que ficaram por ser ditas nesta crise sanitária. E que, em respeito, talvez devam ficar por não ser ditas, como sendo o único modo de lembrá-las com respeito e dignidade: não há nada mais sagrado do que se silenciar sobre aquilo que importa, como a amizade e o amor que tenho pelos meus amigos Layse e Thiago.
Ainda, sim, desejo muita felicidade para eles. A pandemia tirou de mim essa chance de comemorar, de celebrar a vida. Mas isso vai passar. Em breve.
“Querido Renato,
Com a volta de Saturno, escrevo-te como agradecimento. Eu demorei pra entender mesmo o que dizias. Foi preciso perder 29 amigos para eu saber quem inventou o amor. Renato, não deves estar entendendo nada. É que venho, há uns anos, repetindo que desaprendi a amar. Então, escrevo para te contar como reaprendi isto. Uma mistura incrível de Gandalf com Dr. Victor (Nina), do Castelo Rá-tim-bum, me deu um presente de aniversário. Em vez de dizer “You shall not pass!“, esse mago disse, “Vou te mostrar o Amor”. E foi assim que chegara Layse na minha vida. Pra me reensinar a amar. Ela é ariana como a minha mãe. Morava com a Yokoruja no apartamento 9|3/4, na minha mesma rua. Ainda que eu tenha lido as cartas de Paulo, foi só com Layse que aprendi de verdade que, ainda que eu falasse alemão ou grego antigo koiné, e mesmo que fale a língua dos anjos, sem o amor, eu nada seria.
Ai, Renato, você quer saber quem inventou o amor? Olha, não sei. Mas enquanto a vida vai e vem, Layse encontrou quem lhe diria que quer ficar só com ela, deixar a segurança do seu mundo, por amor. Não, ele não era nenhum Eduardo. Thiago estava mais para ser a Mônica. Ele fazia medicina, falava sobre o Planalto Central. Já a Layse ensinava-o sobre magia e meditação. Eles viajaram juntos, também brigaram juntos, muitas vezes depois. Seguraram altas barras. Como o Barão Munchausen, puxaram a si mesmos da areia movediça pelos próprios cabelos: eles inventaram o amor para si mesmos, meninos perdidos, órfãos, sobrevivendo a tantos piratas gananciosos e abusivos. Comigo, Layse e Thiago revezavam o papel de pais e de irmãos – e, sem saber, eles faziam os papéis de meus filhos também.
Renato, eles se mudaram pela Belém-Brasília, de carro, com a filhote da Yokoruja, soltando pelos no banco de trás do Renault 2002 deles. Thiago trocou o preto, os coturnos, os brincos, pelo jaleco branco. Deixou os cachos crescidos. Decidiu trabalhar no ramo da salvação de vidas, como o espírito amigo, André Luiz. E, agora, o convite da feijoada vai ser no novo apê em SP. Vou sentir saudade da amizade deles no verão. Choro, enquanto escrevo esta carta, porque não sei quem me levará pro Porpino’s pra comer aos domingos e escutar minhas estórias sobre como tantas vezes cometi suicídio social, meus chistes auto-depreciativos. Renato, ninguém sabe quem inventou o amor. Eu, que desaprendi a amar, voltei a sabê-lo, não só quando aprendi a perdoar, mas quando conheci Layse e Thiago. É que, você sabe, “quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”.
Então, foi assim mesmo que o mundo passou a ser meu, quando aceitei que a vida continua e que se entregar é uma bobagem.
E não se esqueçam de mim.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.