Bemdito

Quatro mulheres (e contando)

Reflexões sobre conhecer o desejo feminino que é realmente nosso
POR Jordana Herzog
Detalhe da escultura "O rapto de Proserpina", de Bernini (Foto: Mateus Campos Felipe)

Três mulheres é um livro poderoso, visceral e inspirador sobre o desejo e a sexualidade feminina. Durante oito anos, Lisa Taddeo acompanhou de perto a história de suas três mulheres: Lina, casada com um marido que não a tocava de forma alguma; Sloane, submissa ao marido que tinha tesão em vê-la transando com outros homens; e Maggie, que foi seduzida e aos dezessete teve um relacionamento com seu professor, decidindo denunciá-lo anos depois por corrupção de menor.  

Maggie era uma adolescente com pais alcoólatras, ele, um professor exemplar e pai de família. Enquanto ele foi coroado Professor do Ano, ela foi julgada e taxada de “jovem problemática”, para dizer o mínimo. A cidade ficou em choque não porque uma adolescente teve sua inocência corrompida por um homem adulto, mas porque essa adolescente (agora com seus vinte e poucos) teve a coragem de falar contra ele. No fim das contas, Maggie que esteve no tribunal. E ela perdeu. 

Taddeo permitiu que essas mulheres, talvez pela primeira vez na vida, verbalizassem e conhecessem seus próprios desejos, traçando relatos desde a infância, passando por cenas de abuso, primeiras paixões, casamento, casos. Para mim, não foi uma leitura fácil: nós mulheres sempre nos vemos no sofrimento de outras, especialmente no que tange a sexo e relacionamentos. O livro também me deixou perguntando: O quanto do que desejamos e procuramos em um parceiro é fruto do machismo estrutural, da masculinidade tóxica? O quanto da nossa sexualidade foi moldada por homens? Como o desejo pode florescer quando crescemos internalizando pequenas violências com nosso corpo, com nosso Eu? 

A mídia certamente tem o seu papel na construção do nosso desejo. O sexo no cinema, na indústria pornográfica, na televisão e até mesmo na literatura teve por anos (e até hoje) seu foco no prazer masculino. É o chamado male gaze: o olhar e a representação da mulher do ponto de vista do homem heterossexual. A mídia também nos ensina a odiar nossos corpos, ao invés de descobri-los.  

Quando você é uma mulher, seu corpo pertence à sociedade antes mesmo que possa ter uma ideia dele. Penso em como, quando criança, eu desejava me expressar através de roupas que eram consideradas extravagantes pelos meus pais, e então eles escolhiam por mim. Penso em todas as vezes que meu corpo foi invadido por toques e olhares inapropriados, da infância à adolescência. Penso em como os homens olham para minha roupa e procuram um decote quando abasteço o carro. Penso no garoto da escola que me chamou para ver um filme na casa dele e colocou minha mão no seu pênis. Era meu primeiro contato sexual, e foi contra minha vontade. Penso nos carnavais de rua que já frequentei em que pegaram na minha bunda simplesmente porque eu estava andando. 

Penso em quando tinha oito ou nove anos e sofri um abuso na casa da minha tia. Em uma tarde, o caseiro, um jovem, me chamou para um quarto da casa e tocou meu corpo inteiro, me dispensando depois com um “pode ir”. Ele tocou indevidamente o corpo de uma criança, e me deu uma espécie de permissão no fim daquilo. Uma permissão de não experienciar algo pior. Eu passei anos para lembrar e entender o ocorrido, e passarei o resto da minha vida lamentando pela garota que eu era.  

Mais cedo esse ano, tivemos que assistir ao vídeo de um homem adulto tocando inapropriadamente uma criança. O homem é um pastor, e o vídeo foi compartilhado com alegria pelo seu amigo, um famoso cantor cearense. Tivemos que assistir ao cantor chamando quem denunciou seu amigo de “doente”. O pastor ganhou milhares de novos seguidores e centenas de comentários de pessoas influentes o apoiando. Um deles, o da esposa do cantor, dizia que a denúncia era um “absurdo! Desumano!”.  

Nas olimpíadas, assistimos à seleção feminina de futebol da Noruega ser multada porque as atletas se recusaram a usar biquíni no Campeonato Europeu de Handebol de Praia. Os shorts que elas resolveram usar foram considerados “impróprios” pela Federação Europeia de Handebol (EHF).

Tivemos que assistir ao nosso presidente vetar a distribuição gratuita de absorventes para mulheres de baixa renda, obrigadas a sofrer a pobreza menstrual que impacta até mesmo as idas à escola. 

Mais recentemente, assistimos outros assistirem (e filmarem) uma mulher em um trem ser estuprada por 45 minutos. Ninguém a ajudou, ninguém chamou as autoridades cabíveis, não enquanto seu agressor não havia “terminado” com ela.  

Ano passado, eu decidi reduzir drasticamente meu uso da ferramenta de tortura que chamamos de sutiã. Isso me deixou mais confortável com minhas roupas e comigo mesma, mas provocou o desconforto de terceiros. “Mas seus peitos vão ficar caídos.”  “Vai sair assim? Vai ficar todo mundo olhando!” “Moça, você esqueceu de colocar um sutiã hoje!”, disse-me uma senhora no supermercado.  

É a partir de comentários como “mas todos vão ficar olhando” (e nós sabemos que “todos” se refere em sua maioria a homens heterossexuais) que nasce o terreno para culpabilizar a mulher em casos de assédio e outras violências. E não há um dia em que eu não pense no fato de que não conheço nenhuma mulher que não tenha sofrido alguma violência sexual. Então, como podemos ir ao encontro de nosso desejo em uma sociedade que ainda permite uma “cultura do estupro?” Em que mulheres como Maggie e tantas outras vítimas de abusos são culpabilizadas, julgadas e silenciadas? Em que educação sexual é um tabu para o governo?

São nossos pequenos atos de rebelião, como usar ou não uma peça X de roupa, que nos permitem retomar o controle do nosso corpo, esse corpo feminino que é machucado e nos pede cuidado. O meu desejo de estar confortável e usar no meu corpo o que queria foi (finalmente!) maior que o receio de sofrer com o machismo, assim como meu desejo de estar escrevendo abertamente sobre ele.

E assim o faço, com orgulho, em um site criado por mulheres, para mulheres. Esse portal é um de muitos espaços que conquistamos e nos quais possuímos voz para aprender sobre nossos corpos e sexualidade, e expressá-la da nossa maneira. No fim das contas, não importa o que nós mulheres vestimos, fazemos, consumimos, falamos. Ainda seremos condenadas, xingadas, abusadas. Então é melhor que o sejamos no corpo e na roupa que nos satisfaz. 

Não ouso possuir respostas para todas as perguntas que trouxe. Sigo, eu mesma, no aprender de encontrar meu corpo e meu desejo. Por enquanto, o que consigo pensar é: nós, mulheres, devemos contar nossas histórias. Há poder e liberdade em enfrentar os tabus e outras imposições sobre nós e simplesmente falar. Nossas histórias, nossas dores, nossos corpos invadidos nos unem e nos fortalecem. Basta que uma outra mulher, como Taddeo fez, nos dê um espaço e nos ouça, e poderemos dar um passo em direção a conhecer o desejo que é verdadeiramente nosso. 

Se você é ou conhece alguém vítima de violência sexual, denuncie. Ligue para o 180.

Serviço  
Três mulheres, de Lisa Taddeo
Harper Collins, 2019
R$29,90
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Jordana Herzog

É graduada em Psicologia e atua como professora de língua inglesa. Também é tradutora e criadora do perfil literário @fortalendo no Instagram.