Bemdito

Que comam brioches, em casa

A falha e a hipocrisia de quem tem tanto poder e aparece sem máscara em público, na pandemia do coronavírus, devem ser apontadas e cobradas
POR Simone Mayara

A Revolução Francesa é tratada por esse nome que junta vários atos, a representação de um ciclo revolucionário que aconteceu no fim do século XVIII na França. O evento central foi a Queda da Bastilha, que espalhou a revolução pelo país. Por essa razão, em 14 de julho é comemorada a independência da França. Alusão à data naquele 1789.

A junção de acontecimentos que produziram a revolução é um exemplo de tempestade perfeita. Em vários lugares do mundo, soavam as ideias de liberdade, exemplo é a Revolução Americana ocorrida anteriormente. Problemas na colheita tornaram os alimentos escassos, o que se somou a uma enorme crise econômica. Penúria e fome.

Nesse ambiente, os gastos com a corte e a construção de obras monumentais se mantinham em um contraste pavoroso à situação da população. Nesse contexto, uma das frases icônicas da história. Quando informada da situação do povo que não tinha pão, Maria Antonieta teria dito: se não tem pão, que comam brioches.

Qu’ils mangent de la brioche

A certeza sobre a tal frase não existe. Algumas biografias acusam que foi uma charge que circulou na época e acabou entrando para a história. Ainda que não tenha dito, a vida de luxo dos membros da aristocracia fazia muito mais que as palavras de deboche. A razão inicial, portanto, era a indignação com a classe que não produzia, mas dava ordens e vivia luxuosamente às custas do pagador de impostos. O melhor que há na Revolução Francesa é a noção de que os poderes do Estado devem ser limitados. O banho de sangue que se segue e a típica ruptura sem construção das revoluções não são objeto de admiração, nesse aspecto penso mais como Burke.

A questão é que, em um enorme salto histórico e lógico, me veio à mente nos últimos tempos o contraste entre os sentimentos. Em que momento paramos de sentir a obrigação de cobrar quem vive dos nossos tributos? Nesse longuíssimo salto, precisamos incluir, é claro, as diversas mutações da função do Estado, e consequentemente seus servidores, dentro da sociedade. Também a forma como os que chegam ao poder estão lá: se antes uma potestade divina, agora falamos em representantes escolhidos por voto. Também precisa pensar que, na realidade brasileira, a adoração às personalidades é bastante arraigada e cultural.

Ok, feitas as devidas adaptações e reconhecimentos, chegamos ao evento do século: pandemia de coronavírus. Esse período – que não acabou – pode ser analisado dos mais diversos ângulos, mas alguns eventos específicos me trazem à imagem a frase de Maria Antonieta, sem a turba violenta se revoltando depois. Nesse período, muitos artistas e influenciadores digitais, ou seja, pessoas conhecidas e que falam sobre TU-DO na Internet, foram pegas aglomerando e fazendo exatamente o que reprimiam.

Nesse caso, foram alvos de cancelamento, a guilhotina moderna.

Mas essas pessoas não vivem dos nossos tributos, então sua hipocrisia incomoda, mas não me diz respeito. Dói a hipocrisia dos que estão em Versalhes, ou nos seus equivalentes federais, estaduais ou municipais. Mas não é só no Brasil. No momento em que o atual presidente vai a público pedir conscientização, alguns estados retomam a utilização de máscaras e a variante Delta virou O assunto, o presidente Obama realizou uma festa de dias com muitos convidados em uma bela vinícola. Sem máscaras.

Especificamente no Brasil, o governador de São Paulo, João Doria, já caiu nessa situação especialmente duas vezes. Ao decretar o fechamento dos estabelecimentos e medidas bastante restritivas de locomoção em razão da pandemia, foi flagrado em Miami, circulando muito bem, obrigada. Vale ressaltar que no período não havia iniciado a vacinação em massa. A outra vez foi quando decidiu passar o final de semana no Rio de Janeiro e foi fotografado bastante perto de outras pessoas enquanto tomava sol. Situação bastante distinta das restrições em seu estado.

O questionamento e a relação ressurgiram com as imagens do prefeito de Fortaleza, registrado em situação parecida. Ainda que já tenha havido alívio das restrições de circulação e funcionamento de estabelecimentos, cenas como a expulsão dos trabalhadores da feira da Rua José Avelino, em Fortaleza – reprimidos de forma violenta, tendo como uma das justificativas o perigo sanitário que representariam – coloca em xeque a argumentação e depois o pedido de desculpas do prefeito.

O salto histórico e lógico que serve de fio a esse texto fica menor nesse ponto: somos de um país com tamanhos privilégios para a aristocracia pública – aqui especificamente os que ocupam cargos de administração e legislação -, que é digna do luxo de Versalhes.

Aparentemente, apontar a hipocrisia de governantes agora, tantos anos depois da Revolução Francesa, é negacionismo. Ou estar jogando contra. Ou ser bolsominion (que junto de genocida e fascista são termos aplicados a qualquer coisa com a qual não se concorde). Diferentemente dos influencers, as decisões daqueles que estão em condição de decisão na máquina pública mudam a vida das pessoas. O fechamento de cidades causou prejuízo econômico enorme que agora apenas inicia a se mostrar.

Mas os danos vão além, o aumento de casos de doença mental foi marcante nos mais diversos países. O prejuízo para crianças e jovens em idade escolar ainda será compreendido, mas a evasão já está sendo sentida sobretudo nas escolas públicas. Mais gente sem educação em um país atrasado.

Por isso, a falha e a hipocrisia de quem tem tanto poder devem ser apontadas e cobradas. Além do motivo que não cansarei jamais de repetir: pagamos seus salários com tributos. Ao tomar esse tipo de atitude, os políticos nos dizem “que comam brioches” quando aumenta o número dos sem pão. E enquanto comem brioches, passeiam e tomam sol: fique em casa.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.