Bemdito

Refugiados urbanos: Uma tragédia social naturalizada e ainda sem vacina

Sem estatística confiável e política pública específica, novos refugiados urbanos continuam surgindo no Ceará e no País
POR Thiago Paiva
Foto: Danilo Alves

Sem uma estatística confiável e centralizada, e ainda sem uma política pública específica, novos refugiados urbanos continuam surgindo no Ceará e no País

Thiago Paiva
r.thiagoo@gmail.com

Há tragédias no Brasil para além da pandemia do novo coronavírus. Sim. Sempre houve. E, para muitas delas, infelizmente, ainda não há vacinas. Existem somente os mesmos remédios amargos e ineficazes de sempre. É o caso do drama dos refugiados urbanos, ou vítimas dos deslocamentos forçados, como queiram chamar.

São pessoas ou famílias inteiras que, da noite para o dia, acabam expulsas de suas residências por membros de facções criminosas. Imóveis predominantemente localizados em assentamentos precários, locais de extrema vulnerabilidade social. E assim, vulneráveis, os moradores obedecem aos ultimatos, invariavelmente, pelo medo serem mortos por desobediência. 

Já as razões pelas quais as facções reivindicam os imóveis variam. Vão desde o envolvimento de familiares, direto ou indireto, com grupos criminosos rivais, passando por dívidas, suspeitas de denúncias anônimas sobre as atividades ilícitas, ou simplesmente interesse em locais estratégicos para a expansão de territórios dominados para o tráfico.

Há relatos isolados e antigos desse problema no Ceará, sobretudo em Fortaleza. Mas foi somente em 2017, com o fim da “pacificação entre facções” no Estado, quando os pactos de não agressão entre esses grupos chegaram ao fim, que os confiscos criminosos de imóveis se tornaram banais, principalmente na Capital. 

Para além dos homicídios, que à época voltaram a bater recordes no Estado, o drama dos refugiados se intensificou. A trégua, que havia derrubado os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) no Ceará em 15%, entre 2015 (4.019) e 2016 (3.407), uma vez desfeita, ocasionou uma explosão nas estatísticas de mortes, que englobam homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.

Em 2017, foram registrados 5.134 casos de CVLIs no Estado, 51% a mais do que no ano da pacificação. E, para não encorpar ainda mais essas estatísticas, feito retirantes, muitas pessoas foram obrigadas a deixar suas casas para se abrigar nas residências de familiares ou amigos. Outros, sem alternativa, passaram a viver nas ruas. 

Encontrei casos assim, de gente desabrigada pelas facções, em dezembro de 2017, quando repórter, numa véspera de Natal, cobrindo a ceia de moradores de rua com grupos religiosos, na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza. Foi um choque pessoal. Hoje, mais de três anos depois, a situação perdura.

Nem mesmo a pandemia e as milhares de mortes impediram a continuidade desse drama paralelo à tragédia humanitária que nos atravessa. Sem uma estatística confiável e centralizada, e ainda sem uma política pública específica, novos refugiados urbanos continuam aparecendo pelo País. É como se o arrastar dos anos não tivesse sido suficiente para adquirirmos imunidade a esse vírus da violência desenfreada, que aprende, dia após dia, novas maneiras de nos deixar de joelhos. 

Feito variantes agressivas de um vírus que se espalha com muita facilidade, e têm como epicentros as comunidades periféricas e os condomínios do Minha Casa, Minha Vida, as facções, com toda a sua letalidade, continuam resistindo às investidas do Estado, com seus remédios ineficazes, ou de efeito paliativo, como o uso da repressão policial nestes locais.

Segundo José Lino Fonteles Silveira, supervisor do núcleo de Habitação da Defensoria Pública do Ceará, nos últimos meses, houve queda na procura da instituição em razão das expulsões, mas elas continuam ocorrendo. A coluna também recebeu relatos de novos casos.

Porém, as únicas alternativas ofertadas às pessoas que procuram ajuda são acompanhamentos, para os casos de grave ameaça, e demandas à Prefeitura por aluguéis sociais, para uma reacomodação em outros bairros. Os pedidos, porém, são todos negados. O Executivo argumenta que não há vagas nos programas que permitem esse benefício.

Já os bancos, quanto aos casos registrados em condomínios do Minha Casa, Minha Vida, como são responsáveis pelos financiamentos, ofereceram a possibilidade de permuta de imóveis ou encerramento dos contratos, mediante apresentação do Boletim de Ocorrência e solicitação de cancelamento de água e luz. E ficamos assim, cada um por si, feito um luto em silêncio. 

As pessoas, e parte das instituições – e aqui vale um reconhecimento ao empenho da Defensoria Pública, ainda que limitado às suas atribuições -, aprenderam a naturalizar os deslocamentos forçados da mesma forma como se acostumaram com as elevadas estatísticas de homicídios, ou da mesma maneira como os negacionistas banalizaram as mortes pela Covid-19. Talvez porque os matáveis sejam os mesmos que estão sujeitos às expulsões. 

Fato é que vivemos uma tragédia permanente. E, sem dúvidas, neste momento, a pandemia deve ser a nossa maior prioridade. Mas, já passou da hora, há muito tempo, dos atores envolvidos nessa temática instituírem o seu “Comitê de Crise” e buscarem, juntos, uma cura para esses deslocamentos, ou um remédio, que seja, mas que tenha o mínimo de eficácia comprovada.

Thiago Paiva é jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário. Está no Instagram e Twitter.

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.