Bemdito

São João do milho e da tapioca

Baião de dois, farofa, mugunzá, vatapá, canjica, tapioca, bolo de milho, mandioca frita, cuscuz: o paladar cearense é junino por essência
POR Ivna Girão

E no festejo do São João, um pratinho junino para incendiar meu coração. 

No paladar do cearense, é junino todo dia. Não precisa esperar os festejos chegarem para logo um pratim devorar. Em qualquer cantim, tem sempre um petisco para apreciar: é baião de dois, farofa, mugunzá, vatapá, canjica, tapioca, bolo de milho, mandioca frita, cuscuz quentinho. 

E pode apertar a quentinha que sempre cabe mais um tantim para no estômago se aprumar. A fome é de festejar o gosto bom da cearensidade, a cultura de lamber os beiços, de repetir o prato e se saciar até cansar, e a gostosura da fatura, do agricultor que planta e se alegra quando a colheita rasga a terra e enche a cozinha de alegria.

Na abstinência de dois anos sem festa no terreiro, sabe por que o cearense não morre de saudade? Basta aguçar o sabor para as memórias se aprochegarem: o junino está vivo em cada almoço de família, cada café da tarde com os amigos, cada receita herdada da tradição. 

O junino vive na bacia de cuscuz que se bota de molho e espera descansar, na tapioca que se namora com o coco e faz nascer a mais gostosa merenda, no feitiço do milho que vira canjica, no movimento de sair do litoral e se enfeitiçar com o mugunzá salgado do sertão. São João é cabra gostador de gostosuras e, no carisma do nosso povo, a mesa está sempre servida para o Santo ter que voltar. 

Para manter o tempero mais vivo, trago aqui um sabor novo de se apreciar: é o livro recém-lançado pelo Coletivo Delirantes, Ceará de Milho e de Mandioca – um tributo à culinária cearense. Para petiscar, apresento um pouco a delícia: “a antologia homenageia o ato de comer como expressão de sociabilidade, de manifestação cultural e dos costumes de nosso povo. A coletânea é uma verdadeira celebração da nossa culinária, de saberes e fazeres transmitidos de geração em geração, constituindo-se, assim, num valoroso tributo literário às tradições alimentares cearenses”. 

E no cardápio do livro, o menu é variado e delicioso. Cada capítulo é uma colherada cheia de saberes e alegrias, para o estômago e para alma: escritores devoram poesias sobre o milho, a canjica, o café com pamonha, o cuscuz, o milho cozido, o louco por mungunzá, a farofa dos Deuses, a revolta do pirão, a rainha da macaxeira frita, a enrolada na tapioca, a vida por um beiju e um tanto mais de lambidas e garfadas. É um livro que se devora gostoso, é para se ler e comer de colher. A coletânea tem apoio da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult CE), por meio da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural.  

Assim como o pratim sempre lembra o São João, tenho na comida a salvaguarda das minhas ancestralidades. Para não morrer de saudades, nem de fome e para adiar o fim do mundo, celebro aqui também meu avô Ismael Marques Pereira que, neste mês de julho, festejaria 100 anos. Foi no seu colo que aprendi o gosto da vida, que senti o sal da terra e o doce do mingau. 

No nosso terreiro em Almofala, tinha sempre um cheiro bom de grolado (comida típica da praia, dos Tremembé, com farofa feita de goma de tapioca) vindo da cozinha e um coco ralado para lembrar que à tarde teria tapioca. Seu Ismael é saudade temperada com beiju, são lágrimas que se saciam com peixe e caju, são risadas celebradas com a mesa posta. 

Vem logo almoçar, avô, que o pirão e a vida não podem esfriar. Te espero e sempre te encontro, seu Ismael, em cada garfada e gole de café.        

Ivna Girão

Jornalista, historiadora e escritora, é coordenadora de comunicação da Secretaria de Cultura do Ceará.