Bemdito

Sexos, gêneros, prisões: sobrevivências

Uma conversa com Luciana Souza, juíza de execuções penais do Tribunal de Justiça do Ceará, sobre a situação carcerária da população LGBTQI+
POR Humberto Pinheiro

Nos versos de Torquato Neto: “leve um homem e um boi ao matadouro / o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.” É de grito que se trata aqui.

É de grito que sempre deveríamos tratar, dentro ou fora do matadouro e do perigo – principalmente, quando esses urros existem sob outros nomes, forjando as nossas cenas assépticas e sem berros de um cotidiano clean que aprendemos como “normal”.

Mas um grito só existe na medida em que pode ser ouvido. E é também de escuta que se deve tratar aqui. Uma escuta que reconhece a humanidade de um grito, ainda que mudo, turvo, como urro, indistinto de forma, inclusive da forma de quem grita, mas óbvio de conteúdo. É de prisão que se quer falar aqui, talvez um dos berros mais abafados e abandonados de uma sociedade, sobretudo porque ela é seu próprio berro, vindo bem de “dentro”, como uma entoação atravessada por um refluxo.  

Uma história de um lugar é uma história das suas punições e dos seus encarceramentos, das suas medidas de fazer das penalidades as respostas e soluções dos conflitos sociais configurados nas suas diferenças. A privação da liberdade foi a grande contribuição dos discursos e das revoluções modernas pela liberdade.

Se não fosse tão estratégico, seria irônico. Se não fosse tão funcional, seria contraditório. Se não fosse banal, seria trágico. Por isso que é impossível pensar qualquer sociedade sem pensar as suas formas de punir, e vice-versa. Não vai haver uma discussão consistente sobre democracia, inclusão, igualdade, diversidade, sem colocar a realidade prisional em pauta, da mesma forma que o contrário.

É isso o que têm feito os juízes das Varas de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Ceará e o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário. Integrante desse trabalho, a juíza Luciana Souza fala aqui sobre a experiência de projetos e práticas para fazer valer o respeito pelas diversidades sexual e de gênero como princípio da rotina da população LGBTQI+ nos presídios.

Muito além de apenas atuar na burocracia do Estado penal, Luciana cria e participa de ideias e ações para garantir a defesa de direitos e da dignidade humana de pessoas em situação carcerária, com toda atenção para as melhores condições de retomada de uma vida no pós e no apesar da cadeia.

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Humberto Pinheiro // Quando e como o sistema carcerário cearense passou a reconhecer a existência de uma população LGBTQI+ sob custódia do Estado?

Luciana Souza // Em 2017, foi inaugurada a unidade prisional Irmã Imelda Lima Pontes, com o objetivo de criar um espaço próprio para internos em situação de vulnerabilidade, entre os quais está essa população. A ideia era evitar preconceitos e violências que existem nos presídios como reprodução dos estigmas e das intolerâncias estruturais contra esses grupos, que já acontecem fora da prisão, sendo desdobramentos das violações contra a dignidade dessas pessoas. Portanto, a criação dessa unidade específica foi uma resposta contra essas violações no espaço prisional cearense, tendo sido uma iniciativa da Secretaria de Justiça do Ceará, com característica pioneira no contexto brasileiro, já que o que havia até então em alguns Estados eram celas específicas, mas em unidades comuns.

Humberto // O que há hoje de concreto na atenção às necessidades subjetivas, corporais e espaciais dessa população, como uso de nome social, pavilhões específicos, tratamento hormonal, além de outras garantias para suas expressões e identidades de gênero?

Luciana // Primeiro, como falei, foi criado um espaço próprio para o acolhimento dessa população. Desde o ano passado, o GMF (grupo de monitoramento e fiscalização do sistema carcerário) desenvolve trabalhos na unidade Irmã Imelda para garantir o reconhecimento da dignidade dessas pessoas, que devem permanecer nessa situação de privação da liberdade, como a preservação de mais acessos aos direitos que não foram retirados por causa do aprisionamento. Para isso, criamos um grupo de trabalho com participação de membros de diferentes instituições, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria da Saúde, Secretaria de Administração Penitenciária, Secretaria de Proteção Social, voluntários, pesquisadores, para pensar e planejar ações para esse público. Uma das nossas frentes, inclusive, é o acesso à hormonioterapia e ao nome social, para o qual estamos vendo toda a questão da documentação, com parceria com cartórios, por exemplo.

Entre outras ações planejadas, vamos oferecer capacitação para todos os policiais penais e servidores do sistema prisional cearense para uma maior conscientização e entendimento da realidade desse público, buscando sempre o seu maior respeito

Pensamos também numa assistência ao pregresso (aqueles que estão próximos a deixar o encarceramento), na recuperação e no fortalecimento de vínculos com seus familiares e próximos. Sobre a hormonioterapia iniciada no contexto penitenciário, a Secretaria da Saúde desenvolve toda uma linha de atenção e cuidado para que esse tratamento tenha uma continuidade coerente fora do presídio.    

Humberto // São feitos levantamentos e relatórios sobre a situação carcerária dessa população?

Luciana // A Secretaria de Administração Penitenciária tem esses dados e faz esse acompanhamento. Dos 259 internos da unidade Irmã Imelda, 75 estão entre gays, bissexuais, transexuais, travestis. As pessoas com orientação sexual de lésbica ficam nos presídios femininos.    

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.