Bemdito

Sofrimento alheio que dói na gente

Sinais de um mundo desigual que cortam os meios de comunicação e os corações mais sensíveis
POR Cláudio Sena
Foto: Warner Bros/Hawk Films/Kobal/REX/Shutterstock

Antes do segundo parágrafo, permita-me pedir desculpas, pois este texto pode te descoachizar um bocado, inflamando seus dias com tristeza, em vez de pílulas enaltecedoras de uma realidade mais feliz. “C’est la vie”, como dizem os franceses. E “la vie est dure”, como disse minha batalhadora professora da língua francófona ao final de uma jornada de trabalho intensa e, ainda, tendo que esclarecer minhas dúvidas. 

Vendo fotografias, vídeos e textos sobre o Oriente Médio que invadiram meu feed de notícias na última semana, penso que fomos todos incomodados com aquele horror que se anuncia, mesmo longe da gente. Pareciam aqueles momentos antes da cena fatídica dos piores filmes de terror, aquela sensação de que algo ruim vai, inevitavelmente, acontecer aos que ficam no Afeganistão. Os que conseguem fugir respiram aliviados (?), todos sem máscaras, até chegar ao próximo “qualquer destino”, sem saber o que lhes aguarda na condição de refugiados de guerra. 

Cenas que me fizeram lembrar dos imigrantes forçados da guerra da Síria e dos advindos da Primavera Árabe tunisiana, além das mulheres muçulmanas de pés descalços no inverno francês de zero grau, enquanto eu calçava duas meias. Do período em Lyon e das passagens em Paris, guardo recortes de imagens, sons e cheiros que me fazem querer voltar para lá.

Com um estranho peso na consciência, porém, também vasculho inevitavelmente a minha memória que guarda imagens da comunidade de não-franceses moradores de barracas de lona, próximo ao trilho do trem. O frio era o mesmo já relatado. Na escola de idiomas mantida pela Igreja Católica, dividi a sala com um bocado de gente que tentava adaptação e sobrevivência naquela brecha de abertura à integração possível. Descobri minha pequenez e comparei meu sofrimento ali. 

Olhos atentos e cabeça desperta são ótimas ferramentas para análise social, mas afetam demais corações minimamente sensíveis. Para piorar essa característica, que é de alguns e também minha, a sociologia entra para mim, tornando tudo ainda mais complexo. E maior. E durável. Tal como aquelas hastes de ferro que seguram abertas as pálpebras do jovem agressivo de Laranja Mecânica, é essa ciência. A realidade e o sofrimento tendem a ganhar grandes dimensões. Pior é que não dá para desviar o olhar. 

O olho, mesmo calejado pela realidade brasileira que nos é familiar, reconhece o sofrimento alheio e não aceita. Mas é preciso viver e, para isso, é como se existisse um pacto de silêncio momentâneo para que possamos tomar nossa cerveja barata ou nossos drinks sofisticados. Talvez uma etiqueta social pautada pelo esquecimento eventual. O problema é que o sofrimento alheio nos procura. Nas placas de papelão que se multiplicam em semáforos ou nas fotos daquele voo de Cabul com destino a não sei onde, os sinais de um mundo desigual cortam os meios de comunicação e os corações mais sensíveis.

Apesar das distâncias, das diferenças culturais, das casas (ou da falta destas), da quantidade de dinheiro que se possui, há uma condição que nos iguala. Trata-se de um momento onde o proprietário de uma cobertura de frente para o Central Park e o afegão acolhido em terras estranhas postam-se no mesmo nível. Ocorre uma vez na passagem ligeira neste plano – para aqueles que acreditam nisso. Talvez ninguém tenha definido tão bem o contrário do que acordamos em chamar por vida quanto o sábio Ariano Suassuna: 

“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.” 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.