Bemdito

“Somos dois homens e nada mais”

Uma exploração do universo dos HSH, homens que fazem sexo com outros homens, mas não se reconhecem gays
POR Paula Brandão

Uma exploração do universo dos HSH, homens que fazem sexo com outros homens, mas não se reconhecem gays

Paula Brandão
paulafbam@gmail.com

Homens que fazem sexo com homens e não são gays, já ouviu falar? É estranho para nós lançar a lupa sobre esse tipo de assunto exclusivamente masculino, afinal, eles são os mais privilegiados e sempre se apresentaram em primeira pessoa, narrando a História. Por que dar mais bola, com tantos assuntos nossos para tratar?

De vez em quando, eu me aventuro nesse território, por pura curiosidade. E me deixo surpreender, conversando com um amigo que me atualiza sobre as paqueras entre rapazes. Ele me dizia, depois da invasão do Capitólio por americanos másculos, usando chifres e peles de animais, que nem sabia da criação de uma nova designação para o tipo de homem com que ele costumava sair na cidade: os vikings. Brincadeiras à parte, ele queria explicar que esse tipo de boy existe há tempos: homens que fazem sexo com outros homens (HSH), mas que não se identificam como homossexuais. Rapazes que não consideram que o desejo por outro homem defina sua sexualidade. Ao contrário, procuram se afastar ao máximo dos espaços de sexualidades clandestinas, heréticas, frágeis e femininas, impondo-se pela celebração da virilidade. Que lógicas e práticas discursivas forjam esse modelo de homem que busca, desesperadamente, manter-se impassível e resistente em seus papéis de provedor e chefe de família, mas que, na surdina, vivenciam as experiências de masculinidades sedentas de si?

O filósofo Michel Foucault já nos alertava ser a mesma sociedade que encerra a sexualidade ao quarto do casal heterossexual aquela que reinscreve sexualidades ilegítimas em espaços de rendez-vous, às margens da sociedade. O homem duro, viril, super-macho, dominador e superior às mulheres é ensinado desde cedo a se comportar como hegemônico, separado das meninas, em brincadeiras e jogos que incentivam a competição, a não perder, a rejeitar negativas e dar provas de que são homens. Um processo que se inicia quando os pais promovem o chá revelação e dizem “it’s a boy”, pensando ali sacramentar algo que não se define pelo sexo. Assim, os machos seguem vagando por aí, e repetindo um mantra intestino que precisa ser reafirmado, todos os dias. Nessa valência diferencial dos sexos, o homem assume esse lugar do domínio, na exata medida em que rejeita qualquer relação de sujeição ao feminino.

Há um grande investimento do que chamo de “tutores da masculinidade” – pais, irmãos mais velhos, padres e pastores – em consolidar essa ficção masculinista. Os HSH procuram parceiros eventuais do mesmo sexo, garimpando nos mais variados aplicativos, que evitam a visibilidade das peregrinações urbanas, e, ao mesmo tempo, as retaliações sociais. O sociólogo Richard Misckolci afirma que a heterossexualidade compulsória pode ser um bem difícil de dispor socialmente, porque abrir mão dela implica repercussão profissional e familiar. A decisão de manter relações entre homens em segredo é, inarredavelmente, maior por motivações sociais que individuais.

As conquistas e pressões por direitos dos movimentos feministas e LGBTQIA+ buscam dissipar hierarquias de gênero e uma equidade entre homens e mulheres. Incidiram fortemente nos novos arranjos familiares e provocaram uma reação conservadora em nome de Deus, da família e da Pátria. Isso explica o cuidado dos HSH de permanecerem clandestinos. O discurso da supremacia masculina nacionalista cresceu fortemente no Brasil e nos EUA dos vikings, e goza com a ideia de celebração da masculinidade, recolocando a mulher num lugar pré-patriarcado: como presa que deve ser caçada; serva; reprodutora e inferior aos homens.

Foram tantos os avanços das mulheres nos últimos séculos, que já se espera a queda definitiva da epistemologia patriarcal. Contudo, nesse eterno jogo da vida, em que avançamos 10 e recuamos 5 casas, ainda presenciamos uma juventude copiando cortes de cabelo e estilo das gangues londrinas, do início do século XX, bem Peaky Blinders, com um discurso objetivo, militar e agressivo. E o que dizer das Tradwives, em Londres, mulheres casadas que largaram seus empregos para dedicação total ao trabalho doméstico e maridos? Goste-se ou não, chegou a hora de um acerto de contas histórico entre os gêneros, que promova uma igualdade nas relações, e que crie espaço para que os homens possam se reconhecer mais frágeis, humanos, gentis e femininos.

Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).