Teatro é abraço
Para adiar o fim do mundo e amenizar o tédio da morte, temos a arte, a ciência e as vacinas para criarem novos respiros no peito
Por Ivna Girão
ivnanilton@gmail.com
Que saudade você tem do mundo lá fora? A minha é de ir ao teatro. E não tem Netflix, nem espetáculo online que dê conta da minha vontade. O cênico é feito do encontro, do corpo do ator que se prepara para a cena e da ansiedade da plateia em receber um novo encanto. Da alegria de rever os amigos já na fila da bilheteria, de pisar o pé no tapete mágico, de sentar na poltrona e entrar em um portal. Luz se acende, um mundo se ilumina. Teatro é abraço. E em tempos de pandemia, esse é um dos afagos que mais falta me faz. Quando me vacinar e tudo isso melhorar, quero peça de domingo a domingo para a vida celebrar.
Se teatro é nome, Herê Aquino traz o sobrenome. Impossível não festejar as cênicas sem ter vontade de abraçar uma das diretoras mais potentes desse Ceará. Na ausência dos encontros, Herê nos presenteia com o lançamento do livro Diário de Bordo, um projeto apoiado pela Secretaria Estadual da Cultura. A publicação traz à tona as narrativas, as criações de Herê, em um encontro bonito com os bastidores de Os cactos/O ano que não acabou (2007), Putz, a menina que buscava o sol (2017), Îandé Tehoka (2019), Das que ousaram desobedecer (2021) e Des-Amor-Daçar (2021) – os dois últimos ainda por estrear.
E haja gatilho para tanta vontade de voltar a encontrar as vozes de Herê no palco. O livro, fruto de um trabalho coletivo, traz ainda textos de parceiros: Marina Brito, Rogério Mesquita, Lara Leôncio, Klebson Alberto, Wallace Rios, Marina Brizeno, Liliana Brizeno e Cia Prisma. Interessados em adquirir a obra podem realizar compra através do perfil do coletivo no Instagram, o valor é R$ 15,00.
E cada espetáculo de Herê traz um diálogo com a cidade e com a vida que nos atravessa. No abril Indígena, a força e potência do resistir no Ceará de Îandé Tehoka. Em Os cactos, a afirmação da liberdade, do grito preso na garganta em tempos tão difíceis, ou de ser leve e alegre como Putz. Celebro a criação da diretora, ao mesmo tempo em que reforço aqui a importância da cultura nessa jornada difícil de dor, de adoecimento, da morte contra a vida, da arte que nos ensina a passar melhor os dias. E assim, o teatro pulsa. Em cada canto do Ceará, tem artista criando, produzindo – mesmo no online. O cênico vai se reinventando, experimentando novos modelos em um exercício criativo que ativa a nossa fé na vida, nas esperanças que dias-teatros melhores virão.
E por falar em teatro, trago aqui um trecho de Nelson Rodrigues que, num relato da infância, relembra a sua vivência com a pandemia da gripe espanhola. “Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim”.
Em seguida, Rodrigues afirma: “A gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos.” Por fim, Nelson aponta que devido ao fato da morte ter se tornado cotidiana na vida dos brasileiros, a “peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte”.
E para adiar o fim do mundo e amenizar o tédio da morte, temos a arte para nos ajudar a atravessar os tempos sombrios, e a ciência e as vacinas para criarem novos respiros no peito. Leiam a poesia de Herê: ela ajuda a interpretar novos presentes e ensaiar outros futuros. No palco da vida, a esperança acende as luzes da ribalta para o espetáculo começar.
Viva o teatro e a vida que acredita e se recria!
Ivna Girão é jornalista e Coordenadora de Comunicação da SECULT. Está no Instagram.