Trabalhos de cuidado: preocupação nossa, da Harris e do Biden
Como o plano de recuperação estadunidense destaca a economia de cuidado e prevê investimentos para tornar o acesso a esses serviços uma política pública robusta
Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com
Nas últimas duas semanas, tratei aqui sobre a sobrecarga das mulheres na pandemia e o acúmulo das tarefas de cuidado, bem como sobre as tarefas domésticas não-remuneradas que também recaem sobre nós. Quando escrevi o primeiro texto, não havia planejado a escrita de uma sequência, mas esse é um tema sobre o qual não faltam debates, identificação e também, como sempre, críticas. Como assim pensam que o trabalho doméstico, algo sempre feito “por amor”, poderia ser remunerado? Como imaginar um mundo em que “cuidar” não seja sinônimo de mulher ou de maternidade? A publicização da responsabilidade de cuidar deve ser uma preocupação estatal?
Acompanhando a Cúpula do Clima e as notícias sobre o projeto de recuperação econômica elaborado pelo governo de Joe Biden e Kamala Harris para os Estados Unidos, notei um ponto importante: a preocupação com a economia do cuidado. O plano de Biden e Harris, chamado de Build Back Better (“Reconstruir Melhor”, em tradução livre), foi pensado desde a campanha para a presidência e começou a ser implementado no início de março deste ano, contando com três eixos de ação: o primeiro, de vacinação em massa e auxílio econômico aos americanos; o segundo, direcionado à criação de emprego, melhoria de salários e condições de trabalho e construção de obras públicas; e o terceiro, ainda não detalhado, direcionado às famílias.
O segundo eixo do projeto tem um tópico específico para falar sobre a criação de empregos de prestação de cuidados e o aumento de salários e benefícios para trabalhadores de cuidados domésticos essenciais. Curiosa com a presença desse tema no programa, li o relatório que baseia as propostas apresentadas. Nele, há o reconhecimento de que, mesmo antes da pandemia de Covid-19, os EUA já viviam uma crise na prestação de cuidados. As dificuldades no acesso às creches e escolas, bem como o atendimento e o acesso a serviços de saúde e cuidado para pessoas idosas e pessoas com deficiência aumentam as obrigações das famílias – principalmente das mulheres –, além de prejudicar a autonomia das pessoas que precisam de apoio para viver. Além disso, os trabalhadores da área de cuidado – majoritariamente, mulheres não brancas – têm péssima remuneração e péssimas condições de trabalho, apesar da essencialidade dos serviços prestados por elas.
Por isso, a expansão da rede de cuidados em si e do acesso à ela, além da valorização dos trabalhadores que atuam nessa área, é uma prioridade importante no plano de Biden e Harris. Os US$ 400 bilhões que o presidente e a vice propõem que sejam investidos na economia do cuidado correspondem a um quarto do orçamento total de US$ 2 trilhões proposto para o programa de recuperação. Tanto quanto a questão climática e as obras de infraestrutura, como construção de pontes e casa, além da reforma de portos e aeroportos, a melhoria do sistema de cuidados é vista como um pressuposto para a reestruturação econômica e social.
Acho que nenhum leitor ou leitora sensato que me leia agora vai discordar do fato de que Joe Biden e Kamala Harris não são esquerdistas. E mais: estão tão longe de ser marxistas quanto eu estou de conseguir escalar até o topo do Monte Everest. Tanto é que muitas das propostas estão posicionadas dentro da lógica capitalista de aumento de produtividade dos trabalhadores – o que é mencionado no relatório. Além disso, eles não estão propondo nenhuma novidade: as feministas já alertam para a falta de investimento público no campo dos serviços de cuidado e para a super exploração não-remunerada das mulheres desde a década de 1970. Apesar dessas e de outras falhas na proposta, essa pode ser uma oportunidade importante de alteração na lógica das responsabilidades de cuidar. É curioso perceber que essas medidas que tornam o cuidado uma questão pública, longe de serem apenas um aceno ou um reconhecimento simbólico, ganham finalmente o nível de importância e investimento necessários, o que pode influenciar outros governos a seguir caminhos similares. Será interessante acompanhar se essa experiência será ou não capaz de ser efetivada nos Estados Unidos e como ela vai interagir com a lógica neoliberal para pensar os caminhos de discussão sobre os trabalhos de cuidado na sociedade pós-pandemia e o papel do Estado nessas mudanças.
Embora não seja momento para fantasias de positividade excessiva ou de pensar que “estaremos melhores após a pandemia”, é permanente o desafio de pensar como será o futuro após o trauma que vivemos desde 2020. Por isso, permito-me imaginar, como a professora Paula Brandão fez no lindo texto publicado na última segunda-feira, um mundo pós-pandemia que seja menos injusto com as mulheres, construído a partir de outras perspectivas de apoio às pessoas que dele necessitam, muito mais transformador do que as propostas ainda incipientes apresentadas pelos EUA. Um mundo em que a redistribuição das tarefas de cuidado seja sinônimo de justiça social e redistribuição de renda. Uma sociedade feminista fora dos dispositivos coloniais e pensada por e para todes.
Dicas:
Para saber mais sobre a Cúpula do Clima e as propostas do programa Build Back Better, o episódio do dia 23 de abril do Podcast “O Assunto, conduzido pela jornalista Renata Lo Prete:
Para entender sobre as problemáticas do trabalho doméstico não-remunerado e o acúmulo das tarefas de trabalho sobre as mulheres: “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista”, de Silvia Federici (Ed. Elefante, 2019)
Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.
Serviço
Podcast O Assunto
Episódio de 23 de abril sobre Cúpula do Clima e o programa Build Back Better
O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista
de Silvia Federici
Editora Elefante
388 páginas
R$ 42,96