Bemdito

Tragédia ou farsa? Bolsonaro e a busca pela comoção popular

Espetacularização da condição de saúde favorece o presidente em termos de cobertura midiática e trégua dos opositores, permitindo sobrevida
POR Monalisa Soares

Na última semana, o noticiário político nacional foi marcado pela imagem do presidente deitado em uma cama de hospital, sem camisa, com sondas e fios de aparelhos pelo corpo. A fotografia foi realizada na internação de Bolsonaro no Hospital das Forças Armadas, em Brasília,  devido à dor abdominal  e a  um quadro de soluço persistente há pelo menos 10 dias.

A avaliação clínica apontou uma obstrução abdominal, o que levou à internação do presidente num hospital de São Paulo e ao cancelamento da agenda de compromissos presidenciais, com destaque para a reunião com os chefes dos demais Poderes, que ocorreria na quinta-feira, 15 de julho.

Como em outras ocasiões, o presidente não perdeu a oportunidade de  fazer uso político de seu quadro de saúde. A fotografia publicada nas redes sociais de Bolsonaro veio ladeada por um discurso que fazia menção ao atentado sofrido nas eleições de 2018. Em texto publicado em sua conta no Twitter traçava uma linha de continuidade entre o ocorrido e a atual condição, além de associar ao PT o interesse de aniquilá-lo.

O teor conspiracionista disparado no perfil do presidente escorreu pelas redes bolsonaristas. Perfis de apoio a Bolsonaro passaram a levantar suspeitas sobre envenenamento por chumbo. Chegaram a indagar  sobre a veracidade dessa informação aos filhos e outros aliados nas redes sociais.

Além das teorias da conspiração, também chamou atenção o ângulo da fotografia do presidente, deitado na cama com a mão de um padre a apoiá-lo, que rememoraria o quadro “A lamentação sobre o Cristo morto” de Andrea Mantegna. Neste caso, com a intencionalidade clara de associar Bolsonaro à condição de mártir. Mesma tentativa que se disseminou em 2018, através da blusa amarela manchada de vermelho, simulando o sangue do então candidato sobre as palavras: Meu Partido é o Brasil.

O uso político das condições de saúde para mobilização da base mais fiel é evidente. Quando tratamos de seus efeitos específicos no restante da população, precisamos observar os dados das pesquisas de opinião que vêm a público e buscar inferências.

Em torno da discussão sobre o efeito do atentado para o favoritismo e a vitória de Bolsonaro no pleito de 2018, o cientista político Jairo Nicolau chama atenção para o fato de que o episódio da facada foi crucial para tornar o então candidato conhecido nacionalmente, gozando de cobertura diária nas TVs.

Além disso, ele passou também a receber menos críticas dos adversários em virtude de sua convalescência. Nesse sentido, a combinação de exposição cotidiana na TV e a trégua dos adversários permitiram a Bolsonaro se resguardar “como nenhum outro candidato havia conseguido”, o que contribuiu para consolidar o crescimento eleitoral que vinha experimentando desde antes do atentado.

Trago as análises de Nicolau para refletir sobre a atual situação. O uso político que Bolsonaro fez da sua condição de saúde oportunamente contribuiu para refrear a cobertura negativa que dominava o noticiário, como os escândalos de corrupção revelados pela CPI da Pandemia.

Ao ser divulgada, a cobertura sobre a internação ofuscou a CPI. Nos canais de TV que transmitiam a sessão da Comissão, ocorriam interrupções para apresentar o quadro de saúde do presidente, apresentar as notas oficiais e as entrevistas com o Ministro das Comunicações.

Depois nos telejornais: conversas com médicos especialistas sobre o caso e seus desdobramentos, cobertura da chegada da comitiva do presidente ao hospital, etc. Bolsonaro voltou, portanto, ao centro da cobertura midiática por outro prisma, fragilizado em sua saúde, e recebendo votos de recuperação de atores políticos (aliados e adversários).

Mais uma vez a combinação entre exposição cotidiana e trégua dos adversários trouxe efeitos positivos para o presidente. Pesquisa Exame/Ideia, divulgada em 16 de julho, mostrou recuo na avaliação negativa do presidente e do governo. De acordo com Mauricio Moura, fundador do Ideia, o estado de saúde foi fator influenciador para atenuar a avaliação negativa.

Nas redes sociais, por outro lado, a reação não foi tão positiva. Levantamento realizado pela APExata indicou que houve uma rejeição do público do Twitter ao uso político da internação pelo presidente. Grande parte dos comentários repercutia falas que o próprio Bolsonaro usou para se referir às vítimas de Covid durante a pandemia: “e daí?”; “todo mundo morre”, etc. Houve, portanto, por parte de internautas, a reprodução da falta de sensibilidade que permeou os discursos do presidente ao longo da pandemia.

As pesquisas de opinião pública, em geral, evidenciam que a população se sensibiliza e atenua as críticas diante de gestores que passam por problemas de saúde. No entanto, gostaria de chamar atenção sobre o uso político intencional que o presidente faz da sua condição.

Os problemas de saúde que lhe assombram se convertem em trunfos políticos a serem usados contra os opositores, servindo de esteio para reavivar teorias conspiratórias com vistas a imobilizar as críticas e os enfrentamentos dos adversários.

Numa célebre frase, Marx diz que “fatos importantes da história se repetem, por assim dizer, duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa”. Lembrei-me da frase quando li o tuíte do presidente que buscava reencenar 2018, associando seu atual quadro com o atentado que sofrera (o que os boletins médicos negam) e retomando a acusação contra o principal partido de oposição.

As pesquisas nos indicam que as ações do presidente na pandemia ajudaram a quebrar a empatia de parte da população. No entanto, a espetacularização da condição de saúde ainda o favorece em termos de cobertura midiática e trégua dos opositores, permitindo sobrevida à estratégia. A retomada da popularidade ocorre num momento oportuno: a CPI estará de recesso por duas semanas. É o tempo de que Bolsonaro dispõe para tentar se afastar das cordas. Resta-nos saber se desta vez ele conseguirá.

Monalisa Soares

Doutora em Sociologia e professora da UFC, integra o Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia e se dedica a pesquisas na interface da comunicação política, com foco em campanhas eleitorais, gênero e análise conjuntura.