Tributar para recuperar
Como a pandemia escancarou que a política fiscal não é neutra e um sistema tributário igualitário é urgente para a recuperação econômica mundial pós-Covid
Thiago Álvares Feital
thiago.feitalv@gmail.com
A pandemia de Covid-19 impactou profundamente a América Latina e seguirá impactando. Além de ser um evento biológico, como qualquer pandemia, a Covid-19 é um fenômeno social e os seus efeitos sobre a economia deverão se prolongar pelos próximos anos. Atenta a este cenário, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) publicou em 21 de abril o Panorama fiscal da América Latina e do Caribe de 2021. Sob o título “Os desafios da política fiscal na recuperação transformadora pós-Covid-19”, o relatório investiga a política fiscal e os resultados alcançados pelos países, dando-nos uma visão de conjunto da região. Neste momento, o documento é essencial para auxiliar os Estados a desenhar estratégias informadas por dados, em face desta que é a maior crise dos últimos 120 anos.
A necessidade de custear novas e urgentes despesas para fortalecer os serviços de saúde — direito central no combate à pandemia —, reforçar os mecanismos de segurança social e preservar a capacidade produtiva das empresas levou a um aumento expressivo dos gastos públicos. Entre subsídios concedidos a empresas e transferências de recursos para as famílias mais pobres, este aumento significou uma expansão histórica de 4,6% do Produto Interno Bruto (PIB) em média. O gasto total dos governos centrais — denominados de União, setor público federal, administração pública nacional ou termo equivalente em cada Estado — chegou a 24,7% do PIB. Segundo a CEPAL, este é o nível mais alto já visto na região desde 1950.
O aumento das despesas não veio desacompanhado. No mesmo período, verificou-se uma redução dos ingressos. A combinação resultou em uma tendência de déficit generalizada entre os países. Despesas maiores diante de ingressos menores levaram ao aumento da dívida pública bruta na América Latina. Considerando apenas os governos centrais, a dívida alcançou o patamar de 56,3% do PIB em média.
Em linha com a orientação ideológica da CEPAL, o documento reitera a necessidade de se ampliar o gasto público estrategicamente para atender as urgências provocadas pela pandemia e permitir a recuperação transformadora a que se refere o título do relatório. Reconhecendo as peculiaridades econômicas da região — que sofre historicamente com uma resistente desigualdade estrutural e com instrumentos de proteção social débeis e pouco abrangentes — o Panorama destaca a importância de se criar uma política fiscal que favoreça o desenvolvimento sustentável. Segundo a CEPAL, esta política passa pela redistribuição de recursos, pelo fortalecimento dos serviços públicos e pelo estímulo ao investimento estatal. Todas estas ações dependem de receitas públicas robustas, o que exige corrigir as deficiências dos sistemas tributários da região.
Os tributos são “o pilar de financiamento” dos gastos públicos, porque são a principal fonte de receitas dos Estados contemporâneos. Confirmando, porém, dados já muito conhecidos, o relatório aponta que os sistemas tributários da região arrecadam mal — tributam mais os mais pobres — e têm baixa capacidade redistributiva — pouco contribuem para alterar as diferenças de riqueza entre as classes sociais. Estas duas características tornam a tributação uma ferramenta ineficiente para financiar o desenvolvimento e reduzir as desigualdades. Isto dificulta a realização de direitos — sobretudo dos direitos econômicos e sociais, como a saúde e a educação — e impede o desenvolvimento sustentável. Aprimorar os sistemas tributários da região é o primeiro passo para garantir que seja possível executar políticas fiscais que permitam realizar os direitos humanos.
Este aprimoramento passa pela criação de um sistema tributário mais eficiente e racional, pauta que tem dominado os debates sobre a reforma tributária no Brasil. Mas passa também pela revisão crítica de outros elementos que contribuem para criar uma dinâmica perversa no sistema tributário. Em primeiro lugar, o combate à sonegação. Porque a sonegação contribui para aumentar as desigualdades sociais, ao desviar recursos que poderiam ser usados para realizar direitos. Por isso, ela deve ser combatida com afinco.
Entre nós, parece haver uma espécie de tolerância social em face da sonegação que é vista como algo menos grave do que os crimes ordinários contra o patrimônio. Esse comportamento é assimilado por um sistema penal que parece mais benevolente diante da sonegação do que diante do furto famélico — aquele motivado pelo desespero de quem precisa saciar uma necessidade urgente e incontornável, como a fome. Uma comparação hipotética simples revela a diferença. Basta pensar em uma pessoa que furta uma mercadoria dentro de uma loja. Caso devolva a mercadoria intacta, três cenários são possíveis, a depender do momento em que a mercadoria foi devolvida. Se devolver antes de recebida a denúncia penal, poderá ter a pena reduzida de um a dois terços; se devolver entre o recebimento da denúncia e o julgamento, poderá se beneficiar da atenuante prevista no artigo 65, III, “b” do Código Penal; e se devolver após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não terá benefício algum. Em nenhuma hipótese, aquele que furtou a mercadoria terá a seu favor a extinção da punibilidade — isto é, da possibilidade de que o Estado venha a puni-lo. Em qualquer caso, ele estará sujeito ao rigor do processo penal e às suas consequências. Com a sonegação, as coisas se passam de forma diferente. Caso haja o recolhimento do valor sonegado, haverá também a extinção da punibilidade. A punibilidade será extinta mesmo que o pagamento — que, no nosso exemplo, corresponde à devolução do valor que foi “furtado” dos cofres públicos — aconteça depois do trânsito em julgado da sentença que condenou o sonegador.
Além de coibir a sonegação, o aprimoramento dos sistemas tributários exige a revisão de incentivos e isenções tanto sob o aspecto da sua eficiência quanto sob o aspecto da igualdade. Em relação ao primeiro, é preciso perguntar: o incentivo gera os efeitos dele esperados? E em relação ao segundo: seus efeitos discriminam um grupo social qualquer? No cenário brasileiro, um exemplo de incentivo ineficiente e discriminatório é a isenção do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF) sobre os lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas de empresas. A medida contribui apenas para aliviar a carga tributária das pessoas mais ricas — que são justamente aquelas que costumam receber lucros e dividendos —, uma vez que não há dados robustos que demonstrem que o incentivo tenha contribuído para atrair investimentos para o país, como propunham seus idealizadores. Também neste aspecto, o país infelizmente está alinhado com os resultados descritos no Panorama, pois a tributação sobre os mais ricos é baixa na América Latina como um todo.
Mas a pandemia trouxe também uma crise do cuidado e possui uma dimensão de gênero. As mulheres são a maioria na linha de frente de enfrentamento à Covid-19, além de serem responsabilizadas pelo trabalho não remunerado de cuidar dos membros da família. Chamando atenção para este importante fato, a CEPAL incorporou pela primeira vez no Panorama uma seção dedicada a analisar discriminações de gênero nos sistemas tributários dos países da região. O relatório reforça a necessidade de se analisar os efeitos das normas tributárias sobre homens e mulheres, porque estes efeitos serão eventualmente diferentes.
Pesquisas sobre o tema — como aquela conduzida pelo grupo Tributação e Gênero da FGV São Paulo — têm surgido no Brasil, mas ainda há muito por fazer. Diante da quase inexistência de estatísticas tributárias robustas e outros indicadores fiscais desagregados por gênero, torna-se difícil incorporar esta dimensão de análise ao processo fiscal brasileiro. Segundo a CEPAL, é preciso inserir o gênero na elaboração do orçamento público; consolidar informações sobre o impacto dos gastos públicos por gênero; e maximizar experiências para mobilizar recursos relacionados ao combate à desigualdade entre homens e mulheres.
A pandemia tornou ainda mais evidente o fato de que a política fiscal não é neutra. Ela afeta pobres e ricos, negros e brancos, mulheres e homens de maneiras diferentes. Para corrigir as desigualdades estruturais que tornam essas diferenças possíveis é necessário construir um Estado capaz de estimular o desenvolvimento, promover direitos e realizar a igualdade. Sem um direito tributário progressivo, isto não é possível. Por esta razão, como destaca o Panorama, a justificativa para a construção de um sistema tributário igualitário não é apenas ética. É igualmente econômica, uma vez que a concentração de renda gera desigualdades e estas resultam em ineficiência. A correção das desigualdades reforçadas pelo sistema tributário é uma das transformações necessárias para a recuperação pós-Covid-19.
Thiago Álvares Feital é advogado e professor. Está no Twitter.