Um ano depois
E se o apocalipse não for uma hecatombe, mas uma pandemia sem data para acabar?
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
Já se foi um ano desde o primeiro registro oficial de coronavírus no Brasil, uma marca alcançada um dia após as 24h mais mortíferas desde o início da pandemia. Vivenciamos um ano lutando contra uma crise, aos trancos e barrancos, incapazes de ver a disseminação do vírus minguar.
Pelo jornal, as notícias da última sexta-feira acumulam gráficos e pedidos de ajuda. São médicos, cientistas, gestores em estado de alarme máximo, declarando o colapso do sistema de saúde, o risco do caos simultâneo em todos os estados. Pedem que as pessoas permaneçam em casa, que sejam conscientes, que redobrem os cuidados. Governadores e prefeitos já não sabem o que fazer para conseguir, por sua iniciativa, vacinas que possam suprir o programa de imunização. O que deveria ser uma campanha massiva, resultado de uma coordenação nacional com logística de guerra, se pulverizou em estratégias locais nem sempre eficientes.
Escrevo do Ceará, onde o presidente da república aterrissou ontem para inauguração de obras no interior: estradas inacabadas, projetos de muitos anos atrás, miudezas. Veio em um avião cheio, acompanhado do ministro da infraestrutura e de outras autoridades do seu entorno. Foi recebido em solo cearense com festa por parlamentares fieis, como o deputado estadual Capitão Wagner (Pros) e o vereador André Fernandes (PSL). Em fotos publicadas nas redes sociais, é possível ver o grupo descontraído, o sorriso largo no rosto. No peito do presidente, uma camiseta barata: eu amo Fortaleza.
No momento em que Bolsonaro provocava suas aglomerações pelo interior, o governador Camilo Santana (PT) inaugurava leitos de UTI em cerimônia simbólica pelas redes sociais, acompanhado do seu secretário de saúde. A mensagem do governador foi clara: a chegada do presidente para provocar aglomerações no momento em que o estado atravessa o pior momento da pandemia é mais que um escárnio, é uma indignidade.
Mas não foi o único absurdo da semana. Em sua live já tradicional às quintas-feiras, o presidente usou seu palanque para disseminar um discurso contrário ao uso de máscaras. Invocou os argumentos mais absurdos, minimizou os riscos, difundiu desinformação. Não o fez em um dia qualquer. Era o dia mais letal da pandemia no Brasil.
Exaurida de tudo, acordei ontem atemorizada pela desesperança, imaginando que o apocalipse não é algo um como um estrondo súbito, mas uma tortuosa estrada de penitências, de avanço lento. Liguei a televisão e dei de cara com o ex-ministro Mandetta, que concedia entrevista. Relembrei a sua voz pausada, a firmeza do tom, a mansidão com que detalha os erros e indica o que poderia ser feito de diferente. Há um ano, quando ainda acumulávamos dúvidas e ansiedades, a sua coletiva diária era um momento de unidade nacional. Parávamos para ouvir o que o poder central nos anunciava como plano.
Mandetta deixou para trás um vácuo que nunca foi preenchido por Bolsonaro. Desde então, o presidente tem estado à nossa frente como um guia maligno, uma alma abjeta que nos precipita para o abismo. Não sei em que ponto da exaustão a população dirá que já chega e parará de entregar nossas famílias e vidas para o sacrifício. Espero que não demore.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.