Bemdito

Uma incorporação antropofágica: Mariguella e a revolução brasileira

Biografia de Mário Magalhães e romance de Jorge Amado ajudam a traçar o cenário de formação do guerrilheiro que incendiou o mundo
POR Leonardo Araújo

Marighella não era o operário branco empobrecido e explorado por seus irmãos de cor nas insalubres fábricas de São Paulo; ou o militar influenciado pelo positivismo europeu marchando através do país contra a República Oligárquica. Apesar de ter sido influenciado pelas correntes contra-hegemônicas que circulavam intensamente nas primeiras décadas do século XX, não parava de constituir, com a materialidade de sua carne, rotas de fuga diante de tudo aquilo que tentava aprisioná-la. Na última entrevista antes de seu assassinato, quando perguntado sobre a ideologia que seguia, o guerrilheiro respondeu, “Marxista-leninista, mas não ‘ortodoxa’, como dizem. Nós não seguimos nem seguiremos jamais, mesmo após a tomada do poder, nenhuma ortodoxia. Ortodoxia é negócio de igreja”.

A corporalidade de Marighella, sua ontologia múltipla – capoeirista, guerrilheira, militante, macumbeira, negra, baiana –, produzia fraturas insuperáveis na performatividade revolucionária importada da Europa, fazendo da cultura popular, dos elementos que especificavam a formação histórica do território brasileiro e de seu povo componentes de uma nova forma de fazer resistência, indisfarçavelmente brasileira. 

Tal incorporação antropofágica, embora não tenha se dado pela adoção de um projeto explícito – a consagração de Marighella pelas mãos de Mãe Caetana, fundadora do terreiro Ilê Axé Lajuomim, permaneceu um segredo – faz lembrar outra figura heroica, criada pelo conterrâneo Jorge Amado. No romance “Tenda dos Milagres” de 1969, o escritor conta a história de Pedro Archanjo, guardião da cultura popular da Bahia e defensor dos direitos dos trabalhadores pobres e explorados.

Embora outro personagem fizesse referência ao líder baiano – o também engenheiro Tadeu Canhoto, o qual respondera uma prova de matemática em versos decassílabos, repetindo o feito de Marighella – Pedro Archanjo guardava com o guerrilheiro uma semelhança digna de nota, em razão de também ser um habitante das fronteiras: entre o erudito e o popular; entre a ciência e a religião; entre a Bahia e o mundo.  Um diálogo travado por ele e o catedrático marxista Fraga Neto, no Bar Perez, revela a distância que havia entre as duas concepções de transformação social. De um lado, o professor que se colocava como herdeiro direito das ideias que aprendera na Alemanha; do outro, o bedel que elevava o saber popular ao mesmo patamar dos grandes pensadores do estrangeiro.

Ao ser indagado por Fraga Neto como poderia, sendo um homem de ciência, acreditar nos orixás, Pedro Archanjo responde,

(…) Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo. Todas essas coisas e muitas outras coisas que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpe lhe dizer. Meu materialismo não me limita (…) Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe, resulta do sentimento e não da razão, nasce quase sempre do medo (…) Tudo isso trago no sangue, professor. O homem antigo ainda vive em mim, além de minha vontade, pois eu o fui por muito tempo. Agora eu lhe pergunto, professor: é fácil ou difícil conciliar teoria e vida, o que se aprende nos livros e a vida que se vive a cada instante? (Amado, 1986, p. 285).

Pedro Archanjo, ou pai Ojuobá como também era conhecido, viveu os últimos dias no castelo de Ester, atravessando os setenta anos de ofício em ofício, mas nunca longe da sabedoria e dos braços do povo, que lhe pranteou a morte como quem se despede de um ente querido, guardião dos segredos da vida e do tempo. Marighella não encontrou o mesmo fim, contudo. Recusando-se a ficar na surdina mesmo após o recrudescimento das mortes, da tortura e da perseguição com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), o guerrilheiro continuou o incansável trabalho de articulação das forças de oposição aos militares. A revolução do povo não podia parar. 

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.