Uma semana longe
A roupa se impõe aos dias feito brechas e automatismos cotidianos mesmo em dias de incerteza
Alice Dote
alicedote@gmail.com
Trouxe uma bolsa, aquela que costumava carregar uma muda de roupa pela Rua Tomás Acioli, do escritório à academia, ao final do expediente. Há mais de duas semanas, espera uma improvável volta à rua. Guarneci seu interior com o bastante — com sobra, pois é de mim pensar nos “e se” — para um ou dois dias. Logo retornaria, e a bolsa, saciada pela rápida viagem, repousaria novamente no armário.
Na manhã da segunda-feira, após a primeira dormida, descobri que aqui ficaria por mais sete, dez, quatorze dias — o número exato ainda carecia de confirmação, assim como outras perguntas que surgiam diante da notícia. Imprevistamente, passaria pelo menos uma semana longe do meu armário e de um tanto mais de meu que ficou no apartamento: materiais de trabalho e calcinhas, livros e comprimidos, equipamentos e um estoque de doce de goiaba. Coisas de todos os dias. Dentre os “e se”, o medo não me deixou levantar o mais decisivo: “e se der positivo o resultado do seu teste?”.
Não, uma semana longe do armário não se tornou, nem por um instante, uma questão. Achei curioso ter trazido, entre algumas peças de roupa, uma espátula de silicone para eventuais necessidades na cozinha de meus pais, mais equipada que a minha. Por que, de tudo que poderia insistir-se necessário para dois dias fora, logo um utensílio doméstico demais para sair de casa enxeriu-se na mala?
Ao longo dos dias que se estendem, tenho usado bastante a espátula: em cada uma das refeições, mais precisamente. A espátula passou ovo, mexeu feijão, misturou massa de bolo e raspou o liquidificador de vitamina. Já as roupas, mal as tirei da bolsa. Diante do que aqui ficou — aquele outro armário ao qual retorno, no vestir e na escrita, continuamente —, sinto como que uma atração irresistível em reconhecê-lo. Relembro uma Alice que fui através de blusas de bandas cujas músicas me fogem da memória, de macias camisas de botão há uma década compartilhadas com minha mãe, de jeans rasgados já desajustados, dos particulares barulhinhos de outras botas.
Ando nostálgica e repetitiva, eu sei. É que essa espécie de diário elogioso às coisas, ao percorrer suas superfícies, acaba por escavar profundo. Sinto, às vezes, como se uma mão – a minha mão –, no gesto da escrita que as toca, cutucasse o que em mim anda adormecido.
Essas roupas, eu as percorro e provo, assim como passeio o olhar pelas lombadas dos livros organizados nas prateleiras frente à cama: de muitos, escapa-me o enredo, mas não a época em que os li. Em um e noutro caso, não me demoro. A leitura atual permanece a mesma iniciada no domingo, um livro lançado nos últimos anos. Passo a maior parte do tempo usando antigos shorts jeans que incansavelmente me acompanharam: tão devotos que por mim até perderam parte do tecido. Na sua perna direita, um rombo quadrado me lembra como, ali, fiapos após fiapos foram abandonando a urdidura. Cansaram-se quando meu corpo mudou, e os deixei descansar. Nos últimos tempos, passei a arriscar prová-los a cada visita feita ao armário dos deixados para depois. Agora, não os tiro mais do corpo e eles parecem me trazer algo de volta. Lembro-me dos vinte anos e dos cabelos tingidos. Aqui, acompanha-o uma dessas blusas que exibe o nome de uma cantora de quem, há muito, não ouço falar (e muito menos a ouço). É uma lembrança de um festival de música que envolvia um ano todo de ansiosas programações. Hoje, pouco se difere de uma dessas blusas-souvenir ou blusas-propaganda, blusas velhas em que se mete rapidamente a cabeça e os braços, sem se reparar exatamente no que diz a estampa sublimada.
A combinação tem se repetido ao longo da semana. Mas os poucos, compromissos online constituem pretexto para os rituais de vasculha dos cabides. Como um lapso de distração e carinho em meio a sentimentos de medo, de impotência, de revolta. Um intervalo: a interrupção breve e necessária, a escorregadela no leviano prazer. Desconfio que há algo de lúdico nisso — ou, pelo menos, é essa a palavra que, por motivos que ainda merecem mais atenção, emerge quando penso nessas misturas (de texturas e cores, de jeitos e mulheres) experimentadas frente ao espelho. Quero, nas mínimas ficções que desembotam o mínimo das horas, reconhecer-me.
Segunda-feira, às dezoito, comecei a me arrumar para passar três horas no quarto fechado, sentada frente a uma tela, na primeira aula do primeiro curso em que me inscrevi após um hiato de apatia ao online (um efeito esperado, como se pode supor, de um inicial exagero de inscrições, links de sala de reunião, lives, telas). A expectativa manifestava-se tímida, mas era inegável nos olhos coloridos. Apareço com a câmera ligada e Socorro repara na maquiagem. Penso que essas pequenas marcas das quais nos investimos também dizem sobre como criar histórias — volta-me aqui a impressão de que é preciso um pouco de fantasia, onde quer que a encontremos ou inventemos, nesses dias cinzas. Na quarta-feira, amanheci com vontade de pintar os lábios de vermelho e pedi os batons de minha mãe emprestados. Lembrei como, lá no começo da década, voltava das boates do Dragão do Mar com o batom vermelho borrado pelo rosto, e decidi ir novamente a uma boate — uma boate mesmo, em que se toca Britney Spears, temos que falar gritando e a luz pulsante nos deixa zonzos — quando tudo isso passar. Entrei em um site e comprei o mesmo batom eternizado nas fotografias da minha primeira Music Box e que, em algum momento ao longo desses dez anos, perdeu-se. Mantenho a câmera ligada.
A quinta-feira de chuva só reconhece o blusão preto, que desde segunda nem mais volta à gaveta por saber que essa será a sua semana de glória.
Esse é um dos pensamentos inúteis que têm me rondado esses dias. As pestes, as guerras e as catástrofes conheceram pessoas vestidas. Me pergunto: como é possível que, outrora e agora, nos vestirmos pela manhã — de qualquer coisa, de uma coisa qualquer — seja um gesto necessário?
Há dias em que a camisola (ou o blusão feito camisola) acorda e prolonga-se tarde adentro como a única veste possível. Há dias em que o banho esquecido justifica a permanência da roupa limpa no armário. Há dias em que a roupa é apenas mais uma das repetições dos dias anteriores, e segue acumulando os cheiros do corpo que os atravessa. Há dias em que esquecemos que estamos vestidos. Mas, afora os dias em que nos resignamos nus, estatelados, sobre a cama, em todos os demais há algo a envolver o corpo, uma veste com a qual nos encontramos no espelho. Mesmo quando não nos vemos. Mesmo que a fantasia dure um instante, ou três horas de tela.
Apesar da estranheza das horas, da preocupação com os nossos, da inquietude da distância de casa, da angústia de estar no mundo, neste mundo: o gesto de vestir-se, como tantos outros mecânicos e irrefletidos demais para serem lembrados, continua impondo-se aos dias. Isso pode ser uma das tantas incongruências do mundo. Pode ser um fardo a mais que relegamos à lista dos automatismos cotidianos. Pode ser uma brecha entre eles.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.