Vacina, fiscal de comorbidade e anatomia instagramável
Último escudo de proteção e instância de privacidade, o corpo de muitos de nós foi revelado em detalhes na última semana
Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com
Na semana passada, deu-se a vacinação das pessoas com comorbidade. Uma felicidade ver amigos, conhecidos, celebridades, desconhecidos e até gente ruim se vacinando. Fotografias segurando placas, #vivaosus, camisa vermelha, chapéu de cabeça de jacaré, enfim, uma ladeira de Olinda convalescente. Bom de ver. E de refletir sobre o que se posta e o que se fala sobre o conteúdo postado.
Descobrimos a esperança no braço daqueles que carregavam doenças invisíveis. Triste ironia. Diabetes, obesidade, síndromes autoimunes, males crônicos, além, claro, aquela que parece ser a campeã em incidência em meu feed: a hipertensão arterial. Mas o pulso ainda pulsa. Isso é o que importa.
Como consequência dos fatos, os esperados atos nas redes sociais: mensagens de amor aos recém-imunizados, de ódio ao governo federal, de ansiedade por ser o próximo e, claro, de críticas envelopadas pelos termos que nascem na força de cada onda. “Fiscal de comorbidade” foi um dos mais observados.
Afora tudo isso, um cenário novo, pelos menos nas mais recentes gerações após as últimas pestes mundiais. O corpo, último escudo de proteção e instância de privacidade, agora revelado, com ênfase naquilo que a própria pele esconde. Fluxo sanguíneo, ritmo cardíaco, espessura das artérias, equilíbrio de sistema endócrino e da tireóide ganharam notoriedade. Daquele espaço-tempo da sala do médico para a eternidade da internet. Entregaram-se em produtos midiatizados as anatomias humanas e as suas dinâmicas falhas, que antes eram invisíveis e obliteradas aos olhos dos outros, aquele restinho que ainda conseguíamos esconder.
Já que o líquido injetado da seringa não é visível, passamos a exibir, orgulhosos, depois de tanta agonia e sufoco, cartões de imunização, passes para a liberdade. Em outros países, sobretudo aqueles mais adiantados que o Brasil no que se trata de vacinação, passou-se a discutir algo como um passaporte de imunização. Além do departamento de imigração, outro de imunização.
Falta pouco para a marca de camisetas pretas com letras brancas fazer um estampa com “Astrazeneca&Pfizer&Coronavac&Vacina”? Loja de bijouterias e seus cards otimistas de Keep Calm and Take Vaccine. Se o caso for investir nas comorbidades, os nichos ampliam-se com possíveis trocadilhos em bonés de mau gosto “Hipertensão ou hipertesão?”. Adesivos de carro com pai, mãe, filha, filho, cachorro e um comprimido de Atenolol. Não faltam “ideias”. Corpos tratados, domesticados e marcados para endoidar Michel Foucault e as/os milhões de foucaulzetes. E eu, professor, espero ansioso na fila dos da 4ª fase, decidindo meu look do dia da vacina, sem saber se postarei foto ou não.
Claudio Sena é doutor em sociologia, professor e publicitário. Está no Instagram e no Twitter.