Bemdito

Vaga-lume de memórias

As memórias do meu avô e a sabedoria poética dos vaga-lumes
POR Tiago Pedro

O ano era 2018 e o lugar, Sertão do Cariri. Casa de meu avô.  Ele, com 92 anos, e eu, com meus 32. Dois anos depois, seria a sua morte. 

Até o momento desse clique e do revelado dessa película 35mm, via essas fotos como mapas, linhas, territórios e fronteiras. Hoje vejo estrelas, pó, constelações e vagalumes. 

Encontros de tempos, colisão entre um presente ativo e um passado reminiscente.  A imagem nos oferece algo como lampejos, como diria Didi Huberman: recordações do dia em que estive aí com ele, mas não sinto essa imagem da mesma maneira que as fiz ou as vejo da mesma maneira como um ano atrás. Vaga-lumes de memória. 

Penso na resistência da minha memória e da mente de meu vó, penso o que queda de seu espírito, algo marcado nessa película 35mm, algo vivo nas estrelas do céu, que, dizem alguns cientistas, é de onde viemos.

No livro de Didi Huberman, A Sobrevivência dos vaga-lumes, inspirado em artigo de Pier Pasolini, o filósofo fala da morte da arte e de resistência, em um jogo metafórico com a fuga dos vaga-lumes das grandes cidades. Esses pequenos seres, em seu gesto de resistência, vão para longe das luzes que o cegam e impedem de se reproduzir. 

O grande jogo, colocado no artigo de Pasolini, é uma luta contra os fascismos, onde essas forças de poder são postas nos grandes holofotes da propaganda e na arte.  

No Cariri, os vaga-lumes são resistentes também. No calar da noite, o calor vira frio, e eles vão aparecendo pouco a pouco, sobrevoando nossas cabeças. Fogem das casas mais iluminadas, é verdade, mas do alpendre da casa de meu avô eu os via traçando suas cartografias e demarcando mapas com luz. 

Vez por outra, batiam em uma parede ou ficavam em sua pele. Um breve momento te olhava, fazia um ligeiro movimento, emitindo luz, um ponto de luz querendo se comunicar com um humano, e acho que nessa espera e nessas trocas de olhares, logo se cansava e voava. A grande verdade é que nós, Homo Sapiens, não sabemos nada de nos comunicar com a luz, nem na fotografia e nem no cinema – os vaga-lumes, sim. Esses, sim, sabem usar a luz melhor. 

Como comunicar para vocês a saudade? A ausência de meu vô? Ou o tempo que escreveu na sua pele a história de sua vida, os dias na lavoura, as rezas para o Padre Cícero…? Cartografia de memórias, dobras de Deleuze… Da luz que era meu vô, algo emanou de sua pele, refletiu em menor ou maior intensidade, queimando os sais de prata de uma película 35mm vencida,  essa imagem latente precisou de um processo de revelação de oxidorredução para, enfim, revelar esse mapas de estrelas, essa memória de uma tarde com ele. Essas fotos são um ato de resistência da memória.

A lembrança só é uma memória quando a esquecemos. É preciso esquecer para lembrar. O ato de arquivar um momento e somente recordar tempos depois é que lhe dá essa substância. Certos momentos não querem ficar arquivados, saltam, são lampejos,  vagalumes de memórias.

Seres que vivem de luz, emitem luz. Eu, como cineasta e fotógrafo, sempre invejei esse seres que vivem de luz, ou se comunicam por ela.

Queria eu viver de luz, como as plantas, ou me comunicar tão bem como os vagalumes. Poucas vezes, conseguir travar um diálogo compreensível com esse seres. Acho que desistem rápido da conversa com humanos. Somente em Cuba, na Serra Maestra, consegui entender um pouco do que esses queriam me contar, mas essa é uma história para outro momento.

Tiago Pedro

Tiago Pedro é fotógrafo documental e cineasta, graduado pela Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños.