Violência contra as mulheres e a inquisição das redes sociais
Nas últimas semanas, dois casos entre tantos de violência contra mulheres geraram ampla repercussão midiática. Pamella Holanda e Joice Hasselmann trouxeram a público denúncias de agressões físicas por elas sofridas. Ambos os casos nos ajudam a refletir sobre como são recebidos os relatos de violência de gênero contra as mulheres pela opinião pública e seus impactos para o estímulo (ou não) às denúncias de agressões.
Na última quinta-feira, 22 de julho, Joice Hasselmann (PSL-SP) veio a público para relatar agressão sofrida em seu apartamento no sábado, 17 de julho. De acordo com a deputada, ela estava em seu quarto assistindo a uma série e havia tomado um remédio para dormir. Depois disso, “apagou” e acordou horas depois, já no chão, com fraturas no corpo e sobre uma poça de sangue.
Além da parlamentar, estava no apartamento o marido, que dormia em outro quarto, e quem, após receber ligação de Joice, prestou os primeiros socorros. Exames indicaram cinco fraturas no rosto e uma na costela. Sobre a suspeita de queda levantada pela parlamentar, os laudos médicos apontaram que, para gerar acidentalmente as lesões que a deputada apresentou, ela teria que ter caído pelo menos 6 vezes. O laudo sugere, portanto, agressão, ao indicar emprego de força física para gerar os traumas.
O caso está envolto em mistérios a serem desvendados pelas investigações instaladas. Diversas especulações estão em curso. Hasselmann afirma ter sido vítima de um atentado político e já indicou, inclusive, o nome de dois suspeitos ao Ministério Público.
Nas redes sociais, os comentários sugeriam que Joice poderia ter sido vítima de violência doméstica. Há questionamentos sobre a demora em apresentar a denúncia, o fato de não ter ido imediatamente ao hospital, etc. A deputada reagiu imediatamente negando a possibilidade e afirmando que as suspeitas contra o marido eram uma “cortina de fumaça” e que ela denunciaria a violência caso viesse de “marido, filho, pai ou irmão”. O marido também deu entrevista à mídia, com Joice ao lado, buscando dirimir as questões suscitadas nas redes.
O que mais me chamou atenção, no entanto, foram os inúmeros comentários e postagens que, mesmo diante das imagens dos ferimentos, buscaram culpabilizá-la pelo ocorrido, circulando discursos que traçavam uma linha justificatória entre a antiga associação política de Joice com o bolsonarismo e a violência sofrida.
Nas redes bolsonaristas, por outro lado, ocorreu o adensamento da violência. Algumas postagens reificavam a associação de Joice com uma porca (referência à personagem Peppa Pig) que caía de alturas, sugerindo que não havia ocorrido agressão e, sim, acidente. Outros posts produziam um antes e depois da parlamentar, fazendo referência ao uso abusivo de drogas, simulando uma campanha de saúde pública.
É relevante destacar a atuação insistente do campo bolsonarista nas redes buscando descredibilizar a deputada e ironizar a violência sofrida. Institucionalmente, a deputada recebeu apoio da bancada feminina da Câmara dos(as) Deputados(as), que reafirmou solidariedade e reivindicou do presidente da Casa Legislativa uma apuração rigorosa para a agressão.
Relação com caso Pamella Holanda
O outro caso de agressão que mobilizou a opinião pública veio à tona há duas semanas: as denúncias de Pamella Holanda sobre a violência cometida pelo companheiro, o produtor musical DJ Ivis. O caso ganhou bastante apelo e teve atuação diligente do poder público em virtude da pressão pública pela punição do agressor, como apontado por Georgia Oliveira aqui no Bemdito. A mobilização da opinião pública impulsionou a repercussão, inclusive, no campo político. Na ocasião, diversos lideranças políticas (da esquerda à direita) fizeram declarações nas redes sociais, repudiando as agressões e reafirmando seu compromisso no enfrentamento à violência contra as mulheres.
O caso de Pamella Holanda gerou muita repercussão pela brutalidade da violência somada às circunstâncias em que esta ocorreu (com reincidência, diante de testemunhas, etc.). O fato de terem sido filmadas é o trunfo para tornar inequívoco seu testemunho. Um comentário de Pamella em entrevista evidencia especificidades do processo de repercussão na opinião pública de casos de violência contra a mulher: “se não tivessem essas filmagens, ninguém acreditaria em mim”. Vale lembrar que havia boletins de ocorrência registrados, fotografias de Pamella com hematomas, etc.
O relato de Pamella nos revela um elemento substancial: quando as mulheres vêm a público denunciar uma agressão que terá grande repercussão é necessário, além de tudo, contar uma história inequívoca. Caso isso não aconteça, haverá questionamentos, suspeições e dúvidas. Não bastam registros policiais, fotografias e/ou mesmo corpos machucados.
É exatamente o que ocorre com Joice Hasselmann. Como justificar que, ao ter acesso às imagens de uma mulher completamente machucada, a maior parte dos comentários nas redes sejam de justificação da violência, dúvidas e até mesmo a produção de memes ridicularizando-a? O argumento para tantas questões é que a história da deputada é nebulosa. Por óbvio que sim, especialmente pelo fato de ela alegar ter estado inconsciente, mas as investigações estão em curso justamente para dirimir tais questões. Isso, no entanto, não deveria ser motivo para impedir a manifestação pública de repúdio a qualquer tipo de violência contra as mulheres em face do episódio sofrido pela deputada.
Pensando nos desafios para o enfrentamento à violência contra as mulheres, o que os casos de Joice Hasselmann e Pamella Holanda nos mostram são as nuances vividas por mulheres que denunciam casos de agressão com potencial de repercussão pública. Fica evidente que as exigências da história bem contada, das provas inequívocas e da reputação da vítima ganham ainda mais densidade nesses casos, pois são tragados no mar da opinião pública. Sendo assim, a pergunta: como essas mulheres irão se motivar a denunciar as violências que sofrem se, antes mesmo de receberem solidariedade, já estarão sob o crivo da turba das redes sociais? Refletir sobre isso, pode nos ajudar a aprimorar as formas de enfrentar as agressões contra as mulheres e avançarmos na garantia de uma vida sem violência como direito de todas.