Bemdito

Virginia Woolf e a peste

O que a experiência do adoecimento pode revelar sobre desejo de vida e de insubmissão
POR Camille C. Branco

O que a experiência do adoecimento pode revelar sobre desejo de vida e de insubmissão

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Na Inglaterra de 1924, Virginia Woolf estava às voltas com a escrita daquele que se tornaria seu livro mais famoso e um paradigma para o romance moderno ocidental, Mrs. Dalloway. Na frase de abertura ficamos sabendo, porque Woolf nos conta, que uma certa Clarissa Dalloway decidiu que ela mesma compraria as flores. Este é o mote escolhido por Woolf para acompanharmos, por meio da técnica do fluxo de consciência e das cenas sobrepostas, um dia na vida e nos pensamentos de Clarissa e dos personagens que orbitam em torno dela, na Londres daquele período. Depois de ler a obra pela primeira vez, passei, eu mesma, a sair sozinha, caminhar pela cidade e comprar flores, uma espécie de renovação de cumplicidade leitora para com os efeitos que as palavras de Woolf imprimiram em mim. Até março do ano passado.

Foi pouco depois do meu aniversário. Chegou até Belém, cidade onde vivo, a primeira notificação de um caso diagnosticado de Covid-19. O vírus parecia, então, uma ameaça com contornos difíceis de discernir: conhecíamos pouco sobre os sintomas, os protocolos de tratamento, o grau de letalidade da doença. Naquele momento, quem pôde, fechou-se em isolamento severo. A partir daquela data – e muito depois dela – eu parei de comprar flores. Um ano se passou e o vírus tornou-se mais familiar e, por isso mesmo, mais aterrador. Poucos dias antes de eu redigir este texto, a prefeitura de Belém declarou calamidade pública na cidade, com leitos de UTI e enfermaria lotados de paciente infectados, índices de morte e contágio crescendo em níveis alarmantes. Somam-se 268 mil mortes no Brasil, a população está longe de alcançar números razoáveis de imunização e o atual presidente, no início do mês, após o registro de um novo recorde diário de mortes por corona vírus, afirmou que o luto de milhares de famílias brasileiras era “frescura” e “mimimi”.

Virginia Woolf meditaria sobre o adoecimento, tendo ela mesma atravessado uma epidemia de gripe espanhola. Parte desta reflexão foi condensada no ensaio Sobre estar doente, publicado no Brasil pela editora Autêntica, na coletânea intitulada O sol e o peixe. No texto, Woolf defende que a doença reestrutura toda a ordem da vida. Para ela, diante do adoecimento, “não é apenas de uma língua nova que precisamos, mais primitiva, mais sensual, mais obscena, mas de uma nova hierarquia das paixões; o amor deve ser deposto em favor de uma febre de quarenta graus”. Deitado convalescendo, o sujeito doente encara a própria mortalidade e, diante desta mirada, o mundo muda de forma. Os amigos parecem outros, bem como os amores, o trabalho, o céu, as angústias. Uma reelaboração de significados se impõe. Pensemos, por um instante, na ampliação dessa experiência para a magnitude de uma pandemia mundial. Nada será como antes.

Estar doente era um processo que Virginia Woolf compreendia, sendo acometida, como foi, por severos colapsos nervosos, até seu suicídio por afogamento em 1941. Ela também parecia compreender os complexos entrelaçamentos entre adoecimento, mortalidade e amor – ao menos é o que sugere o bilhete de suicídio que deixou para o marido, Leonard Woolf, no qual dizia: “Não acho que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes, até a chegada dessa terrível doença. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você poderia trabalhar. E você vai, eu sei. (…) Se alguém pudesse me salvar, teria sido você. Tudo se foi para mim, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar a estragar a sua vida. Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós.”.

Este não é apenas um tempo de doença, mas de amores obstruídos. O distanciamento social, que garante a preservação da vida, nos tira também o calor humano, os abraços, os encontros, o convívio diário com aqueles que nos são caros. Nosso contato é mediado por telas, vemos os rostos das pessoas queridas em pixels. Mrs. Dalloway é um romance de inúmeras camadas, mas reflete, entre outras coisas, sobre os efeitos de um trauma social partilhado – no caso do enredo, o da guerra – na vida psíquica de seus personagens. O fim trágico do idealista Septimus Smith dá pistas da devastação provocada pelo sofrimento prolongado e coletivamente vivido.

No dia em que este texto vai ao ar, eu faço aniversário. 27 anos. Não verei familiares e amigos. É difícil me livrar da impressão de tempo paralisado. Também é difícil não ser atingida pela sensação melancólica de que o último ano da minha juventude foi confiscado de mim. Quando tinha quase 33 anos de idade (a idade do Cristo renascido), Virginia Woolf fez o seguinte registro em seu diário: “O futuro é a escuridão – e isto é a melhor coisa que o futuro pode ser, creio eu”. Penso que a noção de submergir na escuridão é algo que qualquer brasileiro vivo hoje consegue identificar. O desafio desta sentença está em abraçar o desconhecido com a esperança insistente que, disse Woolf, só a doença é capaz de evocar: a do nascimento de uma nova linguagem, mais vertiginosa, mais convulsiva, mais insubmissa, mais inconformada. E a do surgimento de novas paixões e de uma dicção amorosa mais ampla e afirmativa. Trata-se mesmo de esperança – uma virtude que, ao contrário de nós, humanos, recusa-se a morrer.

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.