Bemdito

Feliz dia dos namorados para quem?

A luta para que os LGBTQIA+ tenham direito a beijar no ônibus, andar de mãos dadas e namorar na praça é política, coletiva e cotidiana
POR Rodrigo Iacovini

Solteiro em mais um Dia dos Namorados, fiquei encantado com todo o amor que preencheu as redes sociais neste último final de semana. Mesmo sabendo da origem comercial da data brasileira, e ciente de que a grama do vizinho é sempre mais verde no Instagram, acho bonito existir um dia do ano em que o amor é celebrado coletivamente, numa catarse de eternos, atuais e recentes namorados.

Infelizmente, porém, não é permitido a todas as pessoas celebrar livremente os seus amores e afetos nas redes e nas ruas, como lembrou postagem da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Sob diferentes formas e com intensidades desiguais, a vida e os afetos de todas as pessoas LGBTQIA+’s no Brasil foram marcados por essa exclusão, inclusive a minha.

O ano era 2009, a bordo do ônibus Circular 2, na Avenida Desembargador Moreira, vivendo um comecinho de noite em Fortaleza com o menino que gostava. Tentei beijá-lo, como tínhamos feito já várias vezes naquela tarde, mas ele se retraiu. Percebi sua surpresa e tensão. Perguntei o que tinha acontecido, e ele confessou: às vezes não se sentia confortável para beijar outros meninos em lugares públicos, mesmo que fosse na última fileira de um ônibus praticamente vazio.

Aquilo não fazia sentido para mim, não combinava com o estudante universitário branco, alto e forte, de classe média, de esquerda e já fora do armário, por quem eu havia me apaixonado instantaneamente quando, em plena balada, começamos a conversar sobre Paulo Freire. Passou a fazer sentido quando, minutos de silêncio depois, veio a segunda confissão: havia sofrido uma agressão alguns meses antes, quando passeava de mãos dadas com seu ex-namorado no Centro Cultural Dragão do Mar.

Enquanto ele sofria a agressão, talvez até na própria semana ou dia do ocorrido, pude visitar pela primeira vez Amsterdam. Por sorte, ou destino, acabei desfrutando a semana da Parada LGBT de lá. Não apenas a Parada em barcos no canal me fascinou, mas o fato de a cidade inteira viver intensamente aquele período – de forma festiva, política, artística e cultural.

Inebriado pelo clima, me encantei – e não pude evitar de puxar papo – com um casal de adolescentes que, em seus 14 anos de idade, estava vendo um pôr do sol juntos, de mãos dadas, em uma das maiores praças da região. Amáveis e simpáticos, não conseguiam entender quando perguntei se seus pais sabiam que estavam juntos, se não tinham medo de estarem ali. Meu inglês estava bom na época, então não era uma questão da barreira linguística. Eles não conseguiam sequer alcançar o lugar de exclusão do qual provinha a minha pergunta, principalmente quando contei, envergonhado, que aquela realidade que viviam não era a minha realidade.

Talvez esteja romantizando um pouco o diálogo e a situação, afinal já se passaram mais de 13 anos e tampouco morei na Holanda, então não consigo afirmar a representatividade do que testemunhei. Ambos possuíam 14 anos, isso era um fato. Também estavam tranquilos de mãos dadas em plena praça, outro fato. E também posso afirmar que não era à época uma realidade que via frequentemente em Fortaleza ou no Brasil.

De volta ao Brasil, quando o beijo no ônibus foi motivo de medo e tensão, compreendi finalmente toda a extensão da exclusão que pessoas LGBTQIA+ vivem. Entendi por que os jovens de 14 anos de mãos dadas em uma praça haviam me deixado embasbacado. Cresci imerso numa realidade de opressão que não me permitia sequer captar a magnitude da exclusão que me era imposta. Não me sentia livre para viver plenamente meus afetos na sociedade e nas cidades brasileiras. Eu não sabia o que era liberdade.

Naquele momento, me surpreendi pensando o quanto me encontrava disposto a, literalmente, dar a cara a tapa e a viver a partir de então meus afetos de modo público e, consequentemente, político. Claro, trata-se de uma postura ancorada nos privilégios que o fato de ser um homem cisgênero, branco, de classe média alta, me confere. Mas é justamente por isso que acredito ser meu dever estar junto na linha de frente desse embate pelo direito à cidade, uma luta coletiva travada cotidianamente por LGTBQIA+ em todo o Brasil.

Sonhamos e trabalhamos para que, em algum momento do futuro, o Dia dos Namorados não seja causa de medo, vergonha e exclusão. Reivindicamos o direito a beijar no ônibus, a andar de mãos dadas, a namorar na praça. Não aceitaremos nada menos que a liberdade.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.