Bemdito

Sexos, gêneros, prisões: sobrevivências #2

Uma conversa com Catarina (nome fictício), presidiária trans e socióloga, que reflete sobre ser LGBT no sistema prisional
POR Humberto Pinheiro

Se estivéssemos mesmo empenhados em derrubar o fascismo explícito do governo Bolsonaro, teríamos começado todas as aulas – do Ensino Fundamental ao Superior – e todas as conversas que aconteceram nos últimos dias de junho denunciando a barbárie da qual Roberta Nascimento da Silva foi vítima no Recife. 

Travesti e sem-teto, Roberta dormia numa barraca de lona no centro da capital pernambucana, no dia 25 do mês passado, quando foi atacada por uma pessoa que jogou álcool no seu corpo e ateou fogo. Levada para o hospital, onde inicialmente foi colocada numa ala masculina, ela até agora teve seus dois braços amputados como consequências das queimaduras de terceiro grau que sofreu.

Mas não só não começamos nenhuma aula com essa história, como tivemos a recente notícia de que a proposta de incluir no projeto Educa Mais, do governo do Ceará, uma abordagem sobre diversidades sexual e de gênero nas escolas públicas foi retirada após pressão da “bancada evangélica” da Assembleia Legislativa, onde estava em discussão esse plano, com ações a serem colocadas em prática pela Secretaria da Educação.

Tão absurda quanto a existência de uma “bancada evangélica” numa institucionalidade laica é fazer concessões à ela, é nos acovardarmos diante dela. Aliás, não foi apenas concessão o que se deu aqui. Foi outra maneira de ser cúmplice da perversidade, da crueldade, do bloqueio de uma democracia que não seja exclusiva para a classe média alta heteronormativa. Foi a contribuição de todos os deputados estaduais para Queimar Mais o corpo da Roberta e os corpos outros que nunca valem nada para eles.

Na minha coluna anterior, trouxe uma entrevista com a juíza Luciana Souza sobre decisões e práticas para garantir os direitos de pessoas LGBTQIA+ em situação carcerária no Ceará, como a definição de uma unidade prisional mais reservada a esse público. E é de lá, e dessa população, que vem a voz que também fala aqui hoje. 

Tentando saber do ponto de vista de alguém desse universo que está em cumprimento de pena no Irmã Imelda Lima Pontes, fiz três perguntas que foram levadas por uma funcionária da unidade até uma dessas pessoas, escolhida por essa servidora.

Não tive acesso mais direto à entrevistada, que se identifica como travesti e se apresenta com o nome social de Catarina, lembrando também que fez bacharelado em Teologia e é socióloga – reconhecendo-se mais, inclusive, na sociologia, área na qual fez um Mestrado. 

Nas palavras dela: “desde o início, eu sempre gostei de estudar esse fenômeno social que está na exclusão, por ser negra, por ser LGBT, por ser uma trans. Então, assim, eu senti na pele e também na convivência do ativismo as dificuldades desses grupos excluídos”.  

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Humberto Pinheiro // No dia 28 de junho de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou um manual inédito com orientações para os magistrados de todo o Brasil sobre direitos fundamentais de pessoas LGBTQIA+ para os contextos judicial, criminal e juvenil. Na introdução desse manual, fala-se de uma Resolução com diretrizes sobre o tratamento a ser garantido à população LGBTQIA+ no sistema de justiça. Entre elas, estão “a identificação da pessoa LGBTQIA+ por meio da autodeclaração” e o “direito à expressão da subjetividade”. Na sua atual condição penitenciária, você se sente respeitada nesses direitos?   

Catarina // Eu fiz a minha autodeclaração e me identifiquei como travesti. Sim, estou tendo direito à expressão da minha subjetividade. 

Humberto Pinheiro // Em recente entrevista para o jornal Folha de São Paulo, a norte-americana Victoria Kolakowski, primeira pessoa trans a se tornar juiz nos EUA, disse que “os tribunais são o fim de uma longa jornada em uma profissão na qual é difícil chegar tendo sido transgênero no passado”. Ela se refere às dificuldades e barreiras para uma pessoa trans ocupar vagas nas Cortes Superiores americanas. Para quem está do outro lado, cumprindo uma pena, você acha que os preconceitos e as exclusões que a população trans sofre, num país como o Brasil, tornam a prisão uma realidade próxima?

Catarina // Sim. Na pontinha dos grupos excluídos, os LGBTs talvez sejam os mais vulneráveis nesse processo de exclusão. Prova disso é a dificuldade que temos de obter uma formação, já que muitas vezes o preconceito vem desde a escola. E, para não sofrer mais preconceitos, a pessoa acaba desistindo, se evadindo do estabelecimento escolar. Uma trans tem mais dificuldade de arranjar um emprego. E quando a gente chega ao sistema penitenciário, a gente já vem com essa carga. Chega a uma instituição extremamente machista, porque o Estado ainda é muito machista. Então, a gente encontra, sim, essas dificuldades institucionalizadas. O Imelda talvez seja uma exceção, mas vale lembrar que o Imelda faz parte de uma instituição maior e essa instituição ainda é machista.   

Humberto Pinheiro // Junho é o mês em que se comemora o orgulho LGBTQIA+. Essa escolha teve como base a Revolta de Stonewall, uma sequência de manifestações que aconteceu em junho de 1969, depois que o bar gay Stonewall Inn, em Nova York, foi invadido pela polícia. Esse ato de resistência se tornou um marco na luta por igualdade de direitos da população LGBT. Como você se entende nessa luta hoje, no Brasil, no Ceará?

Catarina // Eu tenho um histórico de ativismo lá fora. Como ativista fora e dentro da prisão, a gente encontra as mesmas estruturas tradicionais, conservadoras. O Brasil é o país que mais mata LGBTs. Apesar de nós termos uma abertura legislativa muito boa, socialmente, encontramos muita resistência. Nossa legislação está avançada, ela é altamente progressista, porém, o conservadorismo social ainda é muito grande.

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.