Bemdito

O bolsonarista é, antes de tudo, um fraco

Retorno de padre Lino Allegri ao palco das agressões que sofreu é combustível para que continuemos resistindo
POR Jáder Santana

As regiões mais ricas da capital cearense estão povoadas de elementos que simbolizam o atraso de nossa elite – das grandes árvores derrubadas à crueldade de uma arquitetura anti-mendigos-, mas pouca coisa resume melhor essa ruína que os seguidos ataques coordenados contra o padre Lino Allegri, na Paróquia da Paz, no bairro Aldeota. Na foto que os perpetradores dos ataques do último dia 18 fizeram circular por grupos reacionários de WhatsApp, aparecem estampados os rostos desse atraso. 

Os homens brancos, barrigudos, idosos em sua maioria, botaram “os vermelhos pra correr”. Em um dos áudios filtrados e publicados no blog Escrivaninha, em matéria de Dayanne Borges e Ricardo Moura, um militar reformado chama padre Allegri de “filho da puta” e “comunista safado” e comemora a presença massiva de seus colegas de farda na celebração daquele domingo. “Os militares combinaram tudo de ir pra missa. Estava cheio de general, coronel, foram tudo de verde e amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego, perdão”, comemorou. 

Padre Lino Allegri vem sendo atacado desde o dia 2 de julho, quando oito apoiadores do presidente Jair Bolsonaro invadiram a sacristia aos gritos. A perseguição continuou virtualmente, com ameaças enviadas ao número de WhatsApp da paróquia, e presencialmente, nas celebrações dos domingos seguintes. O caso ganhou repercussão nacional, o governador Camilo Santana anunciou a abertura de inquérito para apuração das ameaças e padre Lino solicitou ingresso no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. 

Não conheço padre Lino, mas convivi durante quase um ano com seu irmão, padre Ermanno Allegri, que dirigia a Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital). Trabalhar na Adital, cobrindo pautas relacionadas aos direitos humanos e movimentos sociais em todo o continente, foi fundamental para que eu pudesse, jovem universitário que havia acabado de descobrir As veias abertas da América Latina, cristalizar pensamentos e juízos sobre exploração, imperialismo e justiça social. Padre Ermanno, com sua presença onipresente, figura quase mítica em sua mesa simples, me apresentou a Teologia da Libertação. 

E se aqueles meses de convivência serviram para sedimentar crenças políticas, funcionaram também para desestabilizar pretensas certezas. Minha convicção de que não haveria alternativa para uma Igreja historicamente alicerçada sobre milênios de exploração da miséria e da culpa se mostrou frágil e foi, pouco a pouco, substituída pelo entendimento de que nesta mesma Igreja existem correntes dissidentes interessadas menos nos mistérios de uma doutrina secular e mais nas possibilidades de reação social, consciência política e luta de classe. 

Padre Lino é perseguido porque sua formação de acordo com os ideais da Teologia da Libertação entra em choque com os valores que sustentam a cultura de nossas elites. No Brasil de Bolsonaro, falar de pobre e de classe é ser anti-cristão, anti-Igreja, anti-Brasil. O militar reformado que gravou o áudio citado no início deste artigo vociferou que é preciso “marcar posição” e que “não pode deixar esses filha da puta ocuparem os espaços, não”. Igreja é para rezar. Padre Lino comentou em entrevista recente, “Não queria ser pároco nem vigário. Sempre trabalhei nas pastorais sociais.” A Aldeota não é seu lugar. Aquela não é sua igreja. Os militares não são suas ovelhas. 

Em prefácio à edição portuguesa de seu livro Teologia do cativeiro e da libertação, de 1975, Leonardo Boff esclareceu as origens da Teologia da Libertação. “O contato da fé com os problemas sócio-analíticos fez descobrir campos novos de realização da mensagem cristã e da teologia. Não se trata mais de refletir apenas sobre os campos teóricos já definidos como teológicos, como a temática de Deus, da graça, do pecado, de Jesus Cristo, da Igreja etc., mas de reconstituir e resgatar o campo teológico de dentro de temáticas consideradas profanas, como o econômico, o político, o ideológico, a luta de classes etc.”

Boff vai além: o dever da teologia é ser sempre contextual. Caso não faça isso, “corre o risco de o Deus que pensa refletir não passar da imagem de Deus projetada pela ideologia da classe dominante, mas não mais o Deus vivo e verdadeiro de Jesus Cristo e de Abraão, Isaac, Jacob e todos os profetas.” A Igreja de padre Lino e padre Ermanno é, como sugere o título do livro de Boff, a que nos liberta de uma situação geral de catividade. É contra essa Igreja que o Bolsonarismo se levanta, assim como se levanta contra a catequese libertadora, a pedagogia libertadora e a política libertadora. Eles nos querem presos em eterno cativeiro. 

Há alguns anos, quando a gênese do ódio bolsonarista começava a ganhar terreno no Brasil, uma colega jornalista, reacionária com alguma formação religiosa, publicou em suas redes sociais que todo cristão deveria ter o dever de cagar e cuspir na Teologia da Libertação. É o que fazem os idosos barrigudos da Paróquia da Paz. Cagam e cospem. Agindo em grupo, ameaçam, esbravejam, simulam a consolidação de uma vitória que existe apenas em suas cabeças. Sabem que não venceram e que não vencerão. Sua força é a estupidez de sua obstinação.  

Se algo me serve de consolo na observação atônita das violências perpetradas diariamente em nome dessa onda de ódio que vem consumindo o Brasil é a certeza de que falta a Bolsonaro e seus seguidores a mínima parcela da coragem e da resiliência demonstradas por Lino, Ermanno, Boff, Betto, Lancellotti e tantos que dedicam suas vidas a uma fé que é, antes de tudo, consciência histórica e social. A firmeza de padre Lino, que retornou neste domingo, 25, ao palco das agressões que sofreu, é combustível para que continuemos resistindo. Aquele é seu lugar. Aquela é sua igreja.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.