Bemdito

Galpão ao pé do ouvido

Prestes a completar 40 anos, o Grupo Galpão, de BH, estreia a primeira peça radiofônica: “Quer ver escuta” é abraço apertado que só o teatro pode inventar
POR Magela Lima
Foto: Mateus Lustosa

Na parede aqui de casa, tem um quadro grande com o cartaz famoso da foto de “Romeu e Julieta”, feita pelo Guto Muniz. Na minha estante, tem o livro do Eduardo Moreira. Se eu procurar, hei de encontrar uns DVDs perdidos em algum fundo de armário. A verdade é que eu sempre quis trazer o Grupo Galpão comigo depois de ver seus espetáculos. Quis e trouxe, de algum modo. Às vezes, me rendendo aos souvenirs; outras, me confiando na memória. Vi tanto o Galpão, em tantos lugares, e foi sempre tão bom. Agora, eis que a companhia me surpreende, convidando a experimentar uma relação absolutamente íntima e nova. 

Pela primeira vez, vi o Galpão sem ver. Que diga: vi o Galpão exercitando outros sentidos, que não a visão. Pela primeira vez, também, vi o Galpão deslocado do conforto da minha própria expectativa. E olha que eu achei até tranquilo quando vi o grupo no cinema, misturando realidade e ficção com o genial Eduardo Coutinho. Dessa vez, o Galpão pegou carona no meu carro até o trabalho, tomou banho comigo e até me fez companhia enquanto lavava a louça. “Quer ver escuta”, montagem mais recente da companhia mineira, com direção de Marcelo Castro e Vinícius de Souza, é radiofônica. Estreou na Rádio Inconfidência no dia 10 de julho e, agora, está disponível em cinco episódios nas principais plataformas de streaming.

A opção de interagir com uma dramaturgia seriada no teatro é um jogo muito particular nessa proposta atual da companhia. Há uma leitura possível de modo mais organizado, sequencial, mas há uma beleza também numa proposição aleatória. O título da peça, referência ao poema curtinho do também mineiro Francisco Alvim, “QUER VER? Escuta”, meio que provoca, estimula, uma recepção mais participativa, engajada, mais presente. Quem, de fato, quer ver, pois, que se mobilize nesse ato de escuta e se deixe surpreender. Seja como for, vai ser uma viagem linda.

O elenco tradicional da companhia – Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara – vai interagir no decorrer dos episódios com uma série de outras vozes e sons. “Quer ver escuta” tem textura, tem excesso, no sentido de reivindicar uma atenção que não se deixe dispersar pela sobreposição de informações. Não há, propriamente, nenhuma historinha sendo contada, muito embora a gente se identifique com alguns tipos ou se deixe seduzir pelas vozes particulares dos atores, mas há um encadeamento de ações. Tudo ancorado no universo da sonoridade. 

A verdade é que, desde sempre, o Galpão foi um grupo de teatro que privilegiou seus espectadores com momentos musicais muito ricos. O preciosismo musical, inclusive, é um dos traços mais festejados do grupo ao longo desses quase 40 anos de atuação.  Em “Quer ver escuta”, porém, o esforço de virtuose do Galpão, no que diz respeito à performance, não se volta para o domínio da expressão vocal em números cantados ou para a diversidade de instrumentos que o elenco domina. Neste mais recente projeto, o Galpão parece estar mais preocupado, ou mesmo interessado, por algo mais corriqueiro, apesar de não menos complexo. O Galpão quer provocar escutas, ao mesmo tempo em que quer falar. 

Duas cenas são muito comoventes nessa perspectiva. É arrebatador o esforço protagonizado pelo ator Eduardo Moreira para que o amigo Paulo José, parceiro querido do Galpão, fragilizado pelos 84 anos e pela luta contra a doença de Parkinson, leia um poema do carioca Alberto Pucheu. Por vezes, é quase possível ouvir o suor do empenho para que a delicadeza desse momento fosse possível. E é! E é lindo! O poema, a felicidade e a potência do envelhecer registrados na voz de Paulo José.

Em outro fragmento, sobressai o esforço, também gigantesco, de Paulo André para encontrar o acento preciso de um sotaque que não lhe pertence. Ele quer falar russo com a precisão ou a tranquilidade dos russos. Júlio Maciel, num esforço semelhante, quer encontrar um sotaque que nos amputaram. Ele quer reencontrar os sons e as identidades de uma cultura indígena por tantas vezes silenciada. É muito bonito e muito difícil falar. É muito difícil e muito bonito ouvir.    

Com direção musical e trilha de Davi Fonseca e desenho de som de Pedro Durães, “Quer ver escuta” tem um acabamento muito arrojado e dialoga bastante com o presente que nos atravessa. De algum modo, a gente, escutando, vai identificando os registros do processo de realização da montagem.

A peça celebra todas as marcas do percurso da qual emerge. O que nos é oferecido, enquanto público, tem muito da tentativa do Galpão de continuar a produzir em bando, com e apesar de, tudo o que a pandemia da Covid-19 impôs, particularmente, aos artistas. Basta dizer, por exemplo, que esse trabalho, inicialmente, foi pensado para o palco e acabou migrando para as plataformas de áudio. Não fosse tanta dor e tanta perda, talvez o rádio fosse mesmo a mídia perfeita para uma experiência que quer fazer os ouvidos enxergarem.