Sobre sonhos e experimentações oníricas
Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo (Se não puder vencer os céus, moverei o inferno). É com essa frase que Freud abre o Interpretação dos Sonhos (1900) – obra que pode ser considerada a pedra fundamental da psicanálise -, onde irá propor um método de interpretação do conteúdo onírico, identificando neste a “via régia” para o inconsciente.
Retirada da Eneida, do poeta romano Virgílio, o verso encena o próprio movimento do desejo, o qual, rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores, passa a convulsionar o submundo psíquico para assim se fazer escutar.
Segundo Freud, pela impossibilidade de termos acesso à experiência primária do sonho, a única maneira de retomar o contato com o sonhado seria por meio do processo de elaboração secundária, ou seja, de uma fala que buscaria rememorar e recontar os elementos que o constituíram em toda a sua complexidade (algo difícil de alcançar pelo próprio caráter de inefabilidade que muitas vezes carregam). Ao convidar, então, o/a paciente a associar livremente pensamentos, memórias e afetos que lhe vêm à mente, a intenção é chegar à origem dos traumas e sintomas, os quais extravasam o discurso, a despeito das resistências mobilizadas pelo superego.
Parte da relevância do trabalho do psicanalista, portanto, tem a ver com a recuperação da importância do sonho no discurso ocidental, na medida que essa manifestação inconsciente ganhou especial destaque como um dos motores do tratamento analítico. Em que pese isso, é fundamental reconhecer que, em outras sociedades, os sonhos ocupavam lugar de preeminência, ditando não só modalidades de agência, mas também outras formas de temporalidade e de relação com o mundo, ativadas por sua topologia ambivalente, onde o vivido era experimentado como sonhado e vice-versa.
Em O Oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (2019), o neurocientista Sidarta Ribeiro conta a história de como o líder indígena Touro Sentado, liderando uma coalizão de tribos indígenas, foi capaz de impedir a invasão das tropas do general Custer, por meio de uma visão que lhe veio em sonho. Nela, uma chuva de soldados despencava do céu, indo ao chão de cabeça para baixo como gafanhotos, enquanto uma voz retumbante anunciava “Dou-lhe esses porque não têm orelhas”. A interpretação é que os homens brancos encontrariam sua ruína por não terem ouvido os pedidos dos povos indígenas de que não invadissem o território de caça destes.
Nessa e noutras passagens, Sidarta nos mostra a maneira como os sonhos eram compreendidos em formações sociais não ocidentais. Também nos revela aspectos da ciência desses, que só agora, com os modernos aparatos científicos, começam a ser revelados, propiciando uma espécie de resgate de sua importância, após o pensamento de Freud.
Em diálogo aberto com o Interpretação dos Sonhos, o neurocientista vai mostrar que o psicanalista vienense foi não só o inventor do método psicanalítico, mas também o primeiro bom teórico da inteligência artificial, pela hipótese pioneira de que o funcionamento do aparelho psíquico ocorria em diferentes estratos – id, ego e superego –, cujo emaranhamento dava forma ao oceano de representações mentais que ganharam o nome de inconsciente.
Sidarta vai ainda mais longe ao apontar a importância evolutiva do sonho, em razão de seu papel como oráculo probabilístico, servindo como um simulador de experiências passadas e de acontecimentos que ainda não se concretizaram. Nesse sentido, para todos os mamíferos, os pesadelos teriam evoluído como “uma forma de modular negativamente as simulações de comportamentos perigosos”, ao passo que os sonhos prazerosos corresponderiam à “associação de prazer (recompensa) com as simulações de comportamentos especialmente adaptativos”.
Baseado nas constatações de Sidarta, portanto, seria possível dizer que sonhar tem a capacidade de nos fazer viver melhor, uma vez que nos daria a chance de aprender com situações vividas e até com as que ainda não ocorreram.
Por tudo isso, me propus a experimentar suas recomendações para que, em meio à correria da vida moderna e seu perpétuo mecanismo de produção de demandas, eu pudesse voltar a entrar em contato com meu próprio universo onírico, algo que estava se tornando cada vez mais raro.
A depender da fase do sono, diferentes neurotransmissores são secretados para mobilizar estados distintos, do adormecer, passando pelo sono profundo, até o despertar. Neste, a noradrenalina atua fortalecendo a percepção de estímulos sensoriais – função essencial para a vida de vigília –, além de estimular a rememoração voluntária. Em razão de vivermos em uma sociedade que, a todo momento, nos convoca a responder a incitamentos visuais ou sonoros, é comum já acordamos com o celular na mão, checando mensagens e projetando as ações para o dia.
Com isso, as memórias a elas relacionadas acabam sendo fortalecidas pela liberação do neurotransmissor, fazendo com que a lembrança do sonho careça do estímulo necessário de modo a se tornar acessível. Para driblar isso, Sidarta vai propor um exercício: que, ao dormir, nos autossugestionemos a sonhar e que, ao acordar, passemos um tempo na cama, tentando reaver, com a ajuda de papel e lápis, o fio da meada do conteúdo onírico.
Desde as primeiras vezes em que experimentei a técnica, ela surtiu um efeito inesperado, pois comecei a me lembrar com frequência dos meus sonhos e a ter acesso às elaborações inconscientes que até então permaneciam enigmáticas. Isso ajudou inclusive em meu próprio processo de análise, pelas questões suscitadas e pelos afetos que foram despertados em mim.
Como afirma o cientista, “Cada sonho é um ensaio em si mesmo, uma possibilidade de representações que podem fracassar na primeira imagem, tropeçar na primeira cena, ou seguir em fabricação dinâmica até formar uma catedral de significados (…), como também tecer enredos de profunda ressonância com as emoções vitais do sonhador, cheio de detalhes que se encaixam comoventemente para geral uma composição autoral e verdadeira sobre si”.
Por meio dos livros de Freud e Sidarta, os sonhos ganharam uma nova dimensão para mim, servindo como um convite não só ao descanso do corpo, mas também à expansão da vida e dos sentidos singulares que atribuímos à ela, exercício que invito todos/as/es a experimentar.