Uma indígena nos tribunais
As 42 páginas do Códex 642 hoje situado na Biblioteca Nacional em Lisboa não revelam com exatidão quando a indígena Francisca se deu conta de que havia sido escravizada ilegalmente, mas, por aqueles mesmos registros, sabe-se de certeza quando ela decidiu que a situação não poderia continuar como tinha sido nas últimas duas décadas: em 1739, a mulher, que a essa altura contabilizava quase 40 anos, foi à justiça pedir sua libertação; ela teve a ajuda e o incentivo do namorado mais novo, um tal de Angélico de Barros Gonçalves, alfaiate identificado nos papéis como mestiço.
Os dois deviam estar bastante confiantes porque tudo levava a crer que o judiciário da colônia, se quisesse de fato aplicar a lei, teria de libertá-la do jugo de Anna da Fonte, em cuja casa, na cidade de Belém, ela era explorada desde 1718. As convicções do casal, que havia se formado pouco antes, foram referendadas pelo juiz-chefe, a quem a princípio contaram o caso. Ele decidiu que, incapaz de fornecer todos os certificados que lhe garantiam a posse legítima da peça, Anna da Fonte obrigava-se a deixá-la ir aonde bem entendesse.
Porém a sinhá, como já se poderia prever, recorreu, fazendo o processo subir ao Conselho das Missões. Esse tribunal composto pelos diretores das várias ordens religiosas que davam as cartas no Grão-Pará da época detinha o poder de decidir por fim sobre as pendengas envolvendo os povos originários. Os julgadores ouviram depoimentos que correram por estas linhas:
Francisca nasceu entre 1700 e 1705 nas profundezas da Floresta Amazônica. A mãe dela, de origem desconhecida, foi capturada pelos manaós, uma etnia que povoava o rio Negro, e lá ficou sob as guardas do chefe Amu, na Ilha de Timoní. Embora alegue ter nascido entre os captores, a reclamante era, assim como sua genitora, considerada despojo de guerra — conceito que ganharia sentido de uma praticidade cruel já na adolescência dela.
É que em 1718, simbolizando boa-fé para com os europeus, Amu realizou o casamento entre a filha dele, cristianizada como Rosaura, e Anacleto da Costa Rayol, que, junto com outro Anacleto, o Ferreira, avançava pelo rio a fim de resgatar as drogas do sertão que abasteceriam o crescente comércio da capital. Claro, não apenas isso.
Os Anacletos haviam arquitetado uma expedição, como, aliás, muitas e muitas outras antes e depois deles, que aproveitava o ensejo da viagem para contrabandear a Belém o máximo de escravizados que conseguissem, na intenção de suprir a demanda infinita de uma mão de obra que seria sempre escassa não apenas porque tudo que é vivo perece e morre, mas também, e em especial, porque — e eu não estaria sendo evidente demais — as condições de alimentação, saúde e trabalho das populações subalternizadas cumulavam essas pessoas das mais severas provações.
Por isso o estabelecimento de parentesco com um manaó proeminente era oportunidade a não ser desperdiçada, garantindo-se, devido à tênue harmonia, uma linha de fornecimento de material humano por algum tempo; além de tudo, quanto mais próximos estivessem dos portugueses, mais longe os autóctones ficariam dos holandeses, estes vindos do rio Essequibo, na Guiana, para comerciar tantos bens que os vários habitantes do Negro consideravam de bastante proveito.
Rosaura, então, acabou partindo com os Anacletos, mas não viajou desacompanhada: Francisca estava na sua comitiva particular. Para Ferreira, a presença dela designava lucro muito certo, uma vez que havia assinado contrato com uma dama da cidade, dona Anna da Fonte.
Bem, os termos não versavam oficialmente sobre escravizados; o negócio se restringia apenas a cacau — ele fornecia, ela comprava. No entanto, como se sabe, a ingenuidade morreu com Adão, e por isso eram altas as expectativas de que voltasse na embarcação algum trabalhador que serviria àquela senhora de modo compulsório por inumeráveis anos. Mas, para que assim acontecesse, as Cartas Régias exigiam, desde o início do século anterior, que um religioso integrasse a tripulação dos comboios.
O padre precisava confirmar também que os conduzidos à labuta na nova urbe eram apenas os chamados “índios de corda”, ou seja, prisioneiros angariados após batalhas entre os próprios amazônicos. Não se obedeceu a nenhuma dessas imposições legais. Nem Francisca foi entregue como cativa, nem há certificado legitimando a escravização assinado por responsável da Igreja.
Muita gente conhecia tais circunstâncias desonestas e se dispôs a contar a história verdadeira diante dos decisores. Angélico, por exemplo, lista-se entre os que prestaram testemunho, por óbvio descartado já que era parte interessada. O que teria a acrescentar que não estivesse contaminado? De qualquer forma, trouxe uma informação valiosa: escutou o sucedido pela boca do próprio Rayol.
Manoel Dias, cunhado de Angélico, analfabeto, afirmou por sua vez ter confirmado a narrativa com Rosaura, que, apesar de viver na região, não foi chamada para esclarecimentos. O voluntário Ignacio Caldeira Lisboa, suposto advogado da querelante, repetiu o que já haviam anotado nos documentos. Assim como ele, colaborou Apolinária. Desta talvez venha a mais relevante contribuição para os autos, porque a jovem, segundo seu relato, foi espectadora dos fatos.
Esteve nas festas de matrimônio, viu o acerto entre Amu e Rayol, ganhou acento na canoa e não deu fé de nenhum jesuíta na comissão portuguesa. Quem era Apolinária? Mulher de “pouca credibilidade”, “uma infeliz da mais baixa extração”, “pobre, vil e infame”: “prostituta”. Enquanto um por um se desacreditavam todos os que ousassem depor em favor de Francisca, Anna da Fonte não apareceu no julgamento. Mandou suas palavras por escrito evitando ser socialmente malvista ao se expor na rua e arregimentou uma tropa de ilibadíssimos cidadãos brancos e velhos para dizer, sem outras papeladas comprobatórias, que Francisca era escravizada conforme o que determinava o direito real porque trabalhava para ela há muito tempo — ou seja, é minha porque já era minha. Só um nome e um tom de pele destoavam.
O indígena Clemente declarou que ele mesmo descendia dos manaós; que Francisca fora apresada por Mabiary; que esse tio dele a encaminhou a Exa; que esse outro chefe tribal a vendeu a Estevão Cardoso do Maranhão; que esse mercador a levou afinal a dona Anna. Encerraram-se assim as oitivas; expediu-se, em seguida, o veredito.
Francisca foi conceituada como escrava resgatada e obrigada a voltar aos afazeres domésticos. O que decorreu dali em diante está guardado apenas nos interstícios do tempo; ficamos com os sons muito característicos e nebulosos das conjecturas. Mais e melhor que elas, restam-nos algumas considerações sobre resistência, a respeito da qual tem muito a esclarecer a trajetória de uma mulher que viveu, a sua maneira, em tempos dantescos como os nossos.
Ainda que numa posição tão frágil, decidiu arriscar a vida, aquela do trabalho não remunerado e aviltante, para ganhar a vida, aquela que teria ao lado de Angélico, talvez com um labor não menos degradante mas remunerado e sem as restrições severas do cativeiro.
O fato de que a justiça dos humanos, através da qual opera a imitativa justiça divina, também esta injusta e terrível, lhe tenha negado a chance de reformular a existência em bases novas não significa que manter-se como propriedade de outra pessoa aniquila nela toda a vontade de rechaçar um sistema tão bárbaro. De Francisca tomaram a liberdade, não a consciência. E é imbuído dela que, confrontado a uma situação implacável, o ser humano encontra meios de desobedecer — inclusive, na aparência, desempenhando ordens.
Não há somente um modo único de sabotar a máquina. Até por ter constituído uma rede de sociabilidade com outros despossuídos e encontrado entre eles alguém com quem sedimentou relações afetivas (uma flor nascendo no asfalto), Francisca mostra que soube muito bem como dizer não, apesar de tudo.
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Agradeço a princípio a Márcio Souza, escritor manauara através de quem ouvi pela primeira vez a narrativa de Francisca, contada no livro História da Amazônia.
Fiquei tão admirado com a força daqueles acontecimentos opondo duas mulheres oprimidas pelo instituto colonial, que decidi consultar a fonte do autor: Struggle and Survival in Colonial America, um compilado de tramas reais mostrando gente de vários lugares de nosso continente tentando sobreviver como conseguia.
É possível que essa obra, organizada por David G. Sweet e Gary B. Nash, volte a aparecer na coluna.