Bemdito

Decifra-me ou te devoro #2

Falar que o sistema eleitoral brasileiro não é auditável é uma demonstração de desconhecimento ou má fé
POR Alisson Sellaro
(Foto: Wikimedia Commons)

Uma das maravilhas que a arte nos traz é a possibilidade de falar da nossa própria vida através do que vemos no outro. Não canso de me surpreender com o poder que certos artistas têm em retratar o melhor e o pior do ser humano de uma forma tão fiel.

No universo criado por George Orwell no livro 1984, as pessoas usavam uma linguagem diferente, chamada novilíngua (newspeak, do original em inglês). Na história, essa linguagem era fundamental para a sustentação social. De estrutura simplificada e vocabulário pobre, se expressar usando a novilíngua era difícil, de modo que a comunicação acabou por se tornar algo puramente funcional.

Dentro da novilíngua, havia um conceito importante: o duplipensar (doublethink, em inglês). A ideia era comunicar duas coisas que eram contraditórias entre si com o intuito de destruir a credibilidade em algo e, no seu lugar, inserir uma inverdade. Tom Zé, no seu dadaísmo tropicalizado, traduziu bem o duplipensar na música : “Eu tô te explicando pra te confundir. / Tô te confundindo para esclarecer / Tô iluminando pra poder cegar / Tô ficando cego pra poder guiar”.

conversamos antes sobre como a linguagem é uma peça fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade, inclusive do ponto de vista tecnológico. Setenta e dois anos depois de Orwell, vemos no noticiário uma forma moderna de duplipensar. Desta vez, focada no processo eleitoral brasileiro. Enquanto se questiona a integridade das eleições, usando argumentos que não se sustentam em pé, os próprios questionadores se beneficiam destes mesmos resultados.

Passada toda a comoção com a tentativa de empurrar goela abaixo o voto impresso através de uma Proposta de Emenda Constitucional, gostaria de convidar você para olhar comigo, do ponto de vista tecnológico, como o processo eleitoral brasileiro funciona. Se você não leu o artigo passado, peço que o faça e volte aqui para continuarmos nosso papo.

O sentido das eleições
Que o óbvio seja um mistério, já sabemos faz tempo. Exatamente por isso, e para termos certeza que estamos falando sobre a mesma coisa, questionar obviedades faz muito sentido. Por exemplo: para que servem mesmo as eleições?

De um modo bem simplificado, podemos dizer que as eleições são um processo social em que pessoas escolhem candidatos que irão representá-las na criação de leis e na gestão pública. Para realizar este processo, são necessárias várias etapas. Na primeira delas, a fase de campanha, as pessoas que se candidatam aos cargos em disputa apresentam propostas do que elas pretendem fazer se eleitas. Depois disso, há uma votação, quando os eleitores escolhem quais candidatos irão representá-los. Quando a votação é concluída, se inicia o processo de apuração, ou totalização dos votos. Nesta etapa todas as escolhas individuais são contadas e somadas, de modo que se saiba quais candidatos receberam a maior votação para cada um dos cargos eletivos em questão. Por fim, os candidatos vencedores são oficialmente empossados e passam a exercer o cargo para o qual foram eleitos durante um mandato por um período determinado.

Até 1995, a votação e a apuração das eleições no Brasil eram feitas com base em votos em papel depositados em urnas de lona. Toda a contagem dos votos era realizada manualmente. Por conta do tamanho do país e das dificuldades de acesso de certas regiões, eram necessários dias até que fosse possível a divulgação dos resultados da votação. A apuração era lenta e não havia segurança de que houvesse substituição ou eliminação de votos legítimos. Além disso, após contados os votos, somar os resultados de diferentes seções eleitorais não era algo simples. A totalização dos votos também era feita de modo manual e, assim, também sujeita a erros e fraudes.

A partir de 1996, o Brasil começou a adotar a urna eletrônica numa tentativa de automatizar e dar mais segurança e velocidade ao processo de coleta e apuração dos votos. O impacto desta nova tecnologia foi tão significativo que enquanto o segundo turno da eleição para presidente de 1989, com cerca de 82 milhões de eleitores, levou três dias para ser apurado, o segundo turno presidencial em 2018, com 147 milhões de eleitores, precisou de pouco menos de duas horas.

Mas para entender como a urna eletrônica ajudou no processo eleitoral, é preciso entender, primeiro, como ela funciona. Embora pareça um dispositivo único, na verdade, a urna é formada de dois componentes principais: o terminal do eleitor, que recebe os votos propriamente ditos, e o terminal do mesário, que habilita a urna para receber o voto do eleitor.

Os dois terminais são conectados de forma segura entre si. A proteção é necessária para que o terminal do eleitor possa garantir que o terminal do mesário conectado é legítimo, e não um dispositivo qualquer fraudulento ou estranho ao processo eleitoral. Esta validação é feita através de uma assinatura eletrônica verificada sempre que há qualquer comunicação entre os dois terminais. De modo similar ao nosso exemplo no artigo anterior, é como se os dispositivos exigissem uma autenticação do cartório cada vez que alguma informação é trocada. Além desta verificação, a informação transmitida entre os terminais é codificada, de modo que apenas o terminal recebedor consiga decodificar o dado enviado.

Outra coisa interessante da urna eletrônica é que ela não possui nenhuma conexão de rede: com ou sem fio. Cada urna é um dispositivo que funciona por si só, isolado dos demais. A decisão de não conectar as urnas a uma rede foi tomada para dar mais segurança ao processo. Não é possível, por exemplo, que algum invasor “se conecte” às urnas e desvie votos de um candidato para outro.

Para iniciar o processo de votação, o presidente da seção eleitoral imprime, através da própria urna eletrônica, um relatório na presença dos mesários e fiscais de partidos políticos. O relatório mostra uma lista de todos os candidatos e o número de votos que cada um possui. Como ainda não houve registro de voto, todos os candidatos aparecem com zero votos. Daí vem o nome do relatório, chamado zerésima, que é parte importante, e obrigatória, do processo de auditoria eleitoral. Quando a votação é concluída, é preciso enviar a zerézima, em conjunto com outros documentos, ao Tribunal Regional Eleitoral para o processo de apuração.

Começada a votação, os mesários iniciam a identificação dos eleitores e coleta dos votos propriamente dita. Há duas formas de verificar que o eleitor é realmente a pessoa que ele diz ser. O mesário pode fazer a checagem através de uma identificação (RG ou CNH, por exemplo) com o título de eleitor e comparar com a lista de eleitores daquela zona eleitoral específica. Desde 2008, o TSE vem ampliando a utilização de identificação biométrica. Nesta modalidade, o eleitor se identifica através da impressão digital coletada eletronicamente no terminal do mesário. O terminal do eleitor é ativado após a identificação com sucesso.

O dito popular fala que “quem tem um, não tem nenhum”. Em computação, o nome técnico para este ditado é redundância. Como não podemos nos dar ao luxo de perder um voto que seja, a memória da urna eletrônica tem mecanismos de redundância, gravando a escolha do eleitor em dois dispositivos de memória diferentes. Estas memórias são também assinadas digitalmente, de modo que se elas forem alteradas indevidamente, o sistema da urna eletrônica detecta a tentativa de fraude, trava a urna, registrando o fato, e solicita que os mesários façam a substituição da urna eletrônica. Também durante a votação, não é possível adulterar o resultado. Fazer isso implicaria no não reconhecimento da assinatura eletrônica dos dados.

Depois da votação
Encerrada a coleta dos votos, é impressa a primeira via do Boletim de Urna (BU), um relatório impresso, também emitido pela urna eletrônica, com a lista dos candidatos, agrupada por cargo e partido, e o número de votos recebidos naquela urna. O BU também inclui o número de votos nulos e brancos. Duas vias do BU são enviadas ao cartório eleitoral. Outra cópia fica com o presidente de mesa para batimento posterior com o resultado por seção divulgado na Internet. Uma cópia do BU é obrigatoriamente colocada num local visível da seção, o que permite que qualquer pessoa verifique os dados do boletim. É possível, ainda, imprimir cópias adicionais do BU para fiscais de partido. Todas as vias são assinadas pelo presidente da mesa, pelo primeiro secretário e por todos os fiscais de partido que estejam na seção. Com isso, a urna gera a Mídia de Resultado, um conjunto de arquivos contendo as informações do BU, bem como o registro de ocorrências. A MR é também assinada digitalmente e codificada. Sua leitura só é possível de ser feita pelo TRE/TSE.

As urnas eletrônicas são, então, transportadas aos centros de apuração, ou cartórios eleitorais. Estes cartórios estão ligados ao Tribunal Regional Eleitoral do estado através de uma rede privada, uma rede de computadores dedicada e fechada apenas para o TRE. Os dados da MR só podem ser transmitidos através de um programa específico do TSE, que também é assinado digitalmente e só é possível ser executado em computadores da Justiça Eleitoral.

A totalização dos votos é realizada pelos sistemas de apuração do TSE. Uma vez recebidos, um sistema se encarrega de conferir a assinatura digital e de decodificar o conteúdo dos arquivos. Passando por esta verificação de segurança, os arquivos são marcados como recebidos, sendo então encaminhados para processamento. Um outro sistema novamente verifica a assinatura digital dos arquivos e adicionam os votos daquela zona eleitoral ao banco de dados de votos. Quando esta operação é concluída com sucesso, os arquivos são marcados como totalizados e são guardados para fins de documentação.

À medida que a totalização ocorre, o TSE libera uma consulta aos dados de apuração parcial, de modo que imprensa, partidos e a sociedade em geral consigam acompanhar em tempo real a apuração. É possível conferir não só os votos totalizados, mas verificar também o resultado de cada uma das seções eleitorais através dos Boletins de Urna online. Portanto, qualquer pessoa pode verificar se há alguma discrepância entre o BU afixado fisicamente na zona eleitoral, assinado pelo presidente da mesa, primeiro secretário e fiscais de partidos, e os votos totalizados para esta mesma seção no sistema do TSE.

Não faz nenhum sentido dizer que não existe auditoria no sistema eleitoral brasileiro. O voto, e as eleições, portanto, são totalmente auditáveis. Como diria Orwell, “saber e não saber, estar consciente de sua completa sinceridade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões que se cancelam mutuamente, sabendo que se contradizem, e ainda assim acreditar em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade e apropriar-se dela, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer o quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza máxima: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar”.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.