Cobaias humanas e o nazismo brasileiro
Em textos anteriores, nesta coluna, pude tratar de dois temas assustadores, os quais intercruzam a história do Brasil com o nazismo.
Primeiro, como lembrei no texto Delírio imunista, é o fato de que o médico nazista, do grupo militar de elite de Adolf Hitler, a SS, morrera no Brasil no fim dos anos 70, depois de ter vivido anos, anônimo, foragido de seus crimes de guerra. Ele se chamava Josef Mengele, também conhecido como “Anjo da morte”. Mengele foi responsável por uma série de experimentos com as chamadas “cobaias humanas”, conhecidas na Alemanha nazista como VP (Versuchpersonen).
O segundo tema, como cheguei a falar mais sobre no artigo Bolsonaro e nazismo: até quando?, são as insistentes coincidências, envolvendo o governo de Jair Bolsonaro, seus apoiadores e secretário de estado, com o nazismo. Por diversas vezes se pode deparar com estas “coincidências”. Houve o uso explícito de trechos do discurso do ministro da propagada do regime nazista, Joseph Goebbels, pelo ex-secretário de Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim. Também houve a apropriação de um dos lemas nazistas pelo próprio Bolsonaro – “Deutschland über alles” (“Alemanha acima de tudo”). E, se já não bastasse tudo isto, há alguns meses, teve até mesmo encontro pessoal do Presidente como deputada alemã de extrema-direita, acusada de racismo e xenofobia, e que, por acaso, é descendente direta de um alto oficial da Alemanha nazista, Beatrix von Storch.
Esses episódios marcam uma série de fatos mais do que “constrangedores”. São verdadeiras vergonhas na nossa história política recente. E valeria lembrar de mais um, o qual interessa à minha cidade natal, Belém, região amazônica, e que demonstra o interesse dos nazistas pela Amazônia. Trata-se da expedição nazista nos anos 30 do século passado, quando sobrevoaram e depois pousaram em minha cidade, com avião anfíbio, talvez por causa de seus interesses pseudocientíficos, pretensiosamente arqueológicos. Também valeria lembrar dos movimentos nazistas pelo Brasil nessa mesma década, mais famosos entre os estados do sul e sudeste, mas que também existiram no norte do país, também em Belém, um dos corações da Amazônia, onde até filial do Partido Nazista se fez por aqui.
Não bastassem todos esses episódios, ainda nesta semana, uma das maiores operadoras de saúde, especializada em saúde de idosos, a Prevent Senior, foi acusada e está sendo investigada por ter realizado experimentos com seus assegurados, sem que eles e elas soubessem, com o chamado “kit covid”. Ou seja, a empresa teria prescrito remédios já comprovadamente sem eficácia, segundo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para além da experiência sem consentimento com pessoas idosas, algo que por si já seria um dos episódios mais macabros da bioética médica brasileira – uma violação biojurídica sem precedentes no país –, há também a hipótese, ainda por ser confirmada, de que talvez este “estudo” tivesse como objetivo demonstrar a pretensa eficácia daqueles mesmos medicamentos descredibilizados pela OMS no tratamento dos sintomas da Covid19.
Ainda teremos de aguardar os resultados das investigações sobre se houve experimentos e sobre quais teriam sido os verdadeiros objetivos do “estudo”. Uma outra suspeita foi levantada, a de que os resultados dos experimentos teriam demonstrado, como era de se esperar, a ineficácia dos medicamentos usados pelo “kit Covid”, e que, por isto mesmo, resultados e dados foram ocultados. Se isto se confirmar, restaria saber também do porquê se quis manipular tais dados em favor do uso do “kit”? E esta questão leva a outras, como, por exemplo, a de se saber sobre quem estaria se beneficiando destes resultados manipulados. Seria o beneficiário o próprio governo de Bolsonaro, quem abertamente defendeu este tipo de “kit” até no mesmo no seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU)?
Se todas estas hipóteses questionadas se confirmarem pela linha investigativa de que a Prevent Senior seria, em verdade, uma empresa financiada pelo dinheiro público federal para testar seres humanos, seus próprios clientes, também financiadores da empresa, com o objetivo de confirmar, ainda que de modo fraudulento, a insistência de Bolsonaro e seus ideólogos pelo uso de medicamentos ineficazes no tratamento de Covid19, então, estaríamos diante de um dos mais macabros, nazistas, pseudocientíficos, desumanos episódios da ciência médica brasileira.
Diante de tudo isto, uma questão quase nunca é levantada pela grande imprensa brasileira: quando o bolsonarismo acabar – se acabar, claro – e quando os riscos da pandemia pela qual vivemos se encerrar – se se encerrar, claro –, os médicos e médicas que receitaram estes medicamentos, profissionais da saúde quem compactuaram com Bolsonaro, com as hipóteses “científicas” da Prevent Senior, irão mesmo ser responsabilizados? Se um dia chegarmos ao ponto de “desbolsonarização” do Brasil, o Conselho Federal de Medicina será também responsabilizado por suposta omissão? Teremos algum tipo de nosso próprio Tribunal de Nuremberg para estes “cientistas”?
Todas essas questões tem profundas implicações com a ontologia do direito, com aquilo que o polêmico filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de mysterium burocraticum, ao lembrar do julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, pelos seus crimes de Guerra. Mas quero ainda lembrar neste texto de mais uma coincidência “nazi-brasileira”. Curiosamente, mais uma vez, parece que não apenas Bolsonaro se utiliza de slogans da propaganda nazista. Pois também a Prevent Senior o fez, quando se utilizava do lema “Obediência e lealdade”, como símbolo do dever pelos médicos da empresa de obedecerem às ordens da chefia da empresa – talvez como o comando de prescrever o “kit covid” aos seus pacientes, cobaias ou não. O termo “Lealdade” era o mesmo usado pelo mesmo grupo de elite do qual participavam os já mencionados médico nazista que morrera no Brasil, Mengele, assim como o famoso Eichmann. E, a propósito, o lema da SS era “Mein Ehre heisst Treue” (“Minha honra se chama lealdade”).
No texto Vacina contra o batismo de sangue, tive a oportunidade de tratar das contradições e equívocos do já mencionado aqui filósofo italiano, Agamben, sobre seu posicionamento acerca da atual pandemia, e de como foi, e ainda o é, muitas vezes comparado à posição de Bolsonaro. Mas queria mesmo encerrar este texto, partindo, mais uma vez, do próprio Agamben, especialmente para ler o caso brasileiro, com o objetivo específico de interpretar o modo como a política sobre a vida e sobre a morte é levada por Bolsonaro no Brasil contemporâneo, e tentando mostrar como, aqui, o discurso bolsonarista, supostamente pelas liberdades individuais, contra o suposto estado de exceção permanente que a pandemia teria gerado, não pode ser levada a sério.
No Brasil, caso as suspeitas se confirmem, o caso Prevent Senior e suas cobaias humanas – ou as VP, como os nazistas chamavam –, mostram, mais uma vez, que a política de Bolsonaro, na pandemia brasileira, no fundo, está para além das “meras coincidências” com a política de morte nazi-fascista. Em outras palavras, é verdade que as posições de Bolsonaro e de Agamben aparentemente coincidem, mas jamais se pode acreditar que a biopolítica de Bolsonaro é pela liberdade, ou mesmo que ele teria uma espécie de anarquismo, contra as medidas autoritárias do estado de exceção permanente.
Permanecer com a ideia de que Bolsonaro é um tipo de libertador, preocupado com a obrigatoriedade biopolítica de vacinação, com o passaporte sanitário, com o direito de ir e vir em território nacional, é se enganar com o seu discurso, e de um modo por demais ingênuo. E, diria mais, é estar cego para a verdadeira política de morte, tanatopolítica, que ele opera no Brasil, ao mesmo tempo que seu grupo político: ataca indígenas; desmata a Amazônia; tenta reformar a administração pública; desmonta os órgãos de fiscalização; interfere na Polícia Federal para proteger seus próprios filhos; tenta lucrar com compras de vacinas duvidosas, na medida em que dificulta a compra de outras vacinas e discursa contra a vacinação, dentre outras tantas mobilizações desumanas e golpistas.
Essa é uma política que se opera simultaneamente à suspeitíssima compra e fabricação de medicamentos ineficazes contra os sintomas da Covid19. E, agora, como se vê, como se tudo isto já não fosse o suficiente, há, agora, a suspeita de investimento ou relações com uma operadora de saúde privada, que usa seres humanos como cobaias, e talvez com o mero e único objetivo de dar um falso fundamento científico à política de morte de Bolsonaro.
No primeiro volume do seu projeto Homo sacer (1995), ao lembrar de como também nos países de democracia liberal experiências científicas antiéticas foram realizadas, Agamben responde à questão sobre como isto ainda seria era possível, a realização de experimentos análogos aos do regime nazista: “A única resposta possível é a de que tenha sido decisiva, em ambos os casos, a particular condição das VP”. Estas cobaias humanas, cujos corpos são manipulados como os dados de pesquisas da Prevent Senior, revelam, assim, o caráter sacro que lhes correspondem e o estado de exceção permanente que a biopolítica de Bolsonaro opera, ainda que seu discurso, somente aparentemente semelhante ao de Agamben, seja contra o estado de exceção.
Em verdade, se for comprovada mesma a relação entre Bolsonaro e os experimentos da Prevent Senior, então estaremos diante de mais um episódio em que o poder soberano sobre a vida e sobre a morte se intercruza com a medicina. E quando isto acontece, revela-se os homines sacri, aqueles e aquelas quem vivem no limiar anômico, mas paradoxalmente sob a Lei válida, a mesma que deveria proteger suas vidas: “uma vida que pode ser morta sem que se comenta homicídio”.
Eis, então, aquilo que Agamben chama de horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade: “o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar.”, a saber, a “terra” onde, para além de haver o poder de deixar viver, mesmo de um fazer viver, também há o de deixar morrer e de matar. No caso brasileiro, sem vacina e sem tratamento adequado, sem proteção efetiva dos povos indígenas, sem políticas adequadas no combate à fome, o extremo deixar morrer, e com os experimentos da Prevent Senior, o poder de matar.