Bemdito

O problema estaria na formação?

Reflexões sobre a indisciplina necessária
POR Cláudio Sena
(Foto: Bekir Donmez)

Se não há reflexão a nível individual antes de cumprir ordens repassadas, a mente pode tornar-se um QG do perigo, um logradouro oficial das maldades. Enquanto numa pista corre a pedagogia libertadora freireana, na outra, em sentido contrário, mas bem próximo e paralela, existirá um fluxo que opera a partir dos segmentos de normas, disciplinas e nada mais além disso.

É justamente na repetição e no treinamento que tais regras de conduta sem margem para abstração e subjetivação se consolidam. As cabeça treinadas do atleta, do policial, do fanático religioso, vão, na medida da entrega, solidificando-se ao ponto de não permitir qualquer ginástica de pensamento ou reflexão sobre o ato no momento-instante-resposta. Do indivíduo assujeitado por completo, não há possibilidade de associação, desconstrução, relativismo ou julgamento pessoal. Depois que toma forma, a mentalidade adestrada vira rocha, dura e impenetrável. É tão difícil mudar.

Do militar que puxa o gatilho ao ser desafiado pela ameaça existente ou não ao comentário machista na roda de amigos (só homens), dá-se um processo de milésimos de segundo totalmente automatizado. São situações que exigem decisões rápidas. Compreensível até. Já pensou se a cada questão que a vida impõe nós fôssemos nos descondicionar? Um processo um pouco mais trabalhoso, mas penso que, para que haja evolução, isso seria preciso às vezes. Muitas vezes.

Os sociólogos poderiam explicar tal força do treinamento pela ação de poderes simbólicos que operam invisíveis. A turma da filosofia conta com a ampla semântica foucaultiana para fincar suas bases de análise sobre o micropoder, a docilidade e a disciplina de corpo e mentes. Os historiadores têm de sobra evidências históricas que dão contexto e sentido ao que se observa nesse processo. Não podemos esquecer do condicionamento, Pavlov, Skinner e uma caixa de ferramentas da psicologia comportamental, por exemplo. Isso para ficar em um pedacinho das ciências humanas. 

Independente das investidas científicas, importantes para a compreensão das causas e efeitos do treinamento, penso que são muitas as situações em que devemos parar e pensar antes de qualquer impulso de resposta. Claro, quando há oportunidade, tempo e vida para isso. Seria fundamental interromper este círculo vicioso do automatismo para que este não se converta na ameaça de uma roleta russa. Talvez sejam importantes os exercícios de descondicionamento, de destreinamento, de subversão e até mesmo de indisciplina. Tarefa árdua em um mundo que tem pressa e não espera.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.