Um tsunami no Brasil de “Piedade”
Há sempre um tsunami na costa do Nordeste, uns silenciosos, outros mais barulhentos. E não é consequência de novas erupções de um vulcão lá das Ilhas Canárias, como no alarde ou na lorota que circulam neste final de setembro. A destruição permanente ocorre de maneira abafada ou com algum esperneio, mas os perdedores são sempre os mesmos. Na praia da Saudade, no litoral sul de Pernambuco, quem engole é a Petrogreen, uma corporação petrolífera; os engolidos são dona Carminha, Omar, Fátima e o pirralho Ramsés — a quem resta explorar o oceano apenas por um aparelho de realidade virtual, uma vez afastado das águas pelo temor dos tubarões.
O brinquedo de Ramsés, quase uma perversão, foi dado como presente de aniversário por Aurélio, um executivo paulista da petrolífera. É Aurélio que, ao fuçar a vida dos herdeiros daquela beirada de terra, também traz para a família uma criatura que havia desaparecido ainda na maternidade, Sandro, proprietário de um cinema pornô em outro ponto longe dali. Ao perder o chão e completar o quebra-cabeça de ressentimentos do filho ausente, só resta a nostalgia de um paraíso perdido. O futuro é ser fantasma de arranha-céu.
Essa encruzilhada entre o desastre ecológico e a maresia que enferruja os viventes por dentro se chama Piedade, um lugar fictício que dá nome ao novo filme do diretor pernambucano Cláudio Assis — em cartaz nos cinemas e serviços de streaming da praça. Carne e unha com a desgraça cotidiana, a fita chegou aos cinemas junto com a notícia sobre o retorno dos ataques de tubarões a banhistas na região metropolitana do Recife. Aqui nada pode ser posto na conta das meras coincidências.
Metáforas famintas da ganância e da catástrofe ambiental, os tubarões começaram a atacar nessa área litorânea no começo dos anos 1990, em consequência do impacto causado pelas obras do porto de Suape. Três décadas antes de filmar essa história, Claudio Assis participava, no centro da capital pernambucana, de manifestações contra as instalações portuárias. Tudo é memória viva e se bulindo no juízo do sujeito. Até o sumiço do irmão é autobiográfico — um acontecimento marcante na família do cineasta.
Todo esse sururu existencial rendeu sustança a Piedade. O roteiro de Hilton Lacerda, Anna Francisco e Dillner Gomes junta as dores do mundo e as dores particularíssimas dos personagens como em um ritmo de marés — vidas secas, vidas cheias… Até o falecido Humberto Bezerra, marido da viúva Carminha (uma Fernanda Montenegro que bota pra ninar um tsunami de almas perdidas) está o tempo inteiro na cena, à espreita, aferindo o discurso sobre a sua importância e sua ausência, em uma espécie de elipse ou dor canalha.
Omar (Sharif, os sobrenomes dos caras têm o DNA do cinema) balança na rede para acordar as ideias e dizer dos seus mares revoltos. São as falas mais bonitas do filme, na prosódia quase soprada pelo balanço, é como se o próprio oceano, nada pacífico, ditasse as palavras para o cabeludo que traga o cigarro da discórdia bem fundamentada. Aí está o ator Irandhir Santos em uma das suas maiores atuações, mas isso diz pouco para o tamanho desse artista do cinema. A rede é Omar. Para o encanto de Ramsés (Francisco de Assis Moraes), o filho de Fátima (Mariana Ruggiero), irmã que parece ter perdido a graça das marés de Piedade.
O que cabe àquela gente jovem reunida? O protesto de vídeo viral contra a escrotidão da Petrogreen. Um Marlon Brando (Gabriel Leone) filho do sumido Sandro (Cauã Reymond) que vibra com a zoada e o espalhamento. Aqui o tubarão une e atualiza o sangue familiar nada piedoso. É uma nova versão do mesmo protesto de rua do estudante Claudio Assis, ainda nos anos 1980, com mais velocidade e com a mesma melancolia de uma certa derrota histórica para os tubarões de sempre. A mesma melancolia (tipo anjo torto ou anjo de Klee) da qual falava o filósofo Walter Benjamin. A mão do velho Benja que balança, queiramos ou não, a rede aparentemente lenta de Omar Sharif.
Pense num filme que ferve qual marisco no mangue. Na sua ideia de fartura de ontem e no apelo da escassez de hoje — falta até cação para acompanhar a cerveja gelada do Paraiso do Mar.
Aurélio não desiste na rede de arrasto. Leva tudo na sua pescaria. Ficam, porém, as sutilezas dos tormentos existenciais de Aurélio, tomado pelo corpo do gênio brechtiano Matheus Nachtergaele. No seu falso fastio sentimental jura não repetir o encontro amoroso quando se depara com a queda de Sandro. Foge do vínculo para que nada atrapalhe o faro de predador. Em nome do pecado capital, vira dublê de tubarão. Sem dó, embora o seu édipo doentio o faça tinhoso e manhoso nas suas manobras de perversidade.
O que mais? Como se não bastasse tudo isso, a direção de fotografia é de Marcelo Durst, marzões abertos de arrombar arrecifes e olhares fechados lá para dentro de cada um dos personagens. Na trilha sonora, se prepare para Jorge Du Peixe (Nação Zumbi), com Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) aboiando os créditos do fim. Quem tiver lágrimas, que derrame. Se já secou como a maré de Piedade, sobrarão olhos em busca de algum sentido para uma vidinha de sururu — expressão da angústia de Graciliano Ramos — perdida em um mar de histórias.