Bemdito

Política da presença e contribuições das mulheres à CPI da Pandemia

Como as senadoras potencializaram os trabalhos de investigação na CPI mais importante da última década
POR Monalisa Soares
Waldemir Barreto/Agência Senado

A CPI da Pandemia encerrou suas atividades na última semana. Após seis meses de trabalho, foi realizada a leitura e aprovação do Relatório Final em reunião da Comissão no dia 26 de outubro. Durante seu período de vigência, refleti nesta coluna sobre os diversos desdobramentos da CPI no jogo político, especialmente, no que concernia à organização no campo oposicionista de um discurso coeso e contundente contra o presidente Bolsonaro. A defesa da ciência e da vida contra o negacionismo e a denúncia de corrupção na aquisição de vacinas se constituíram os temas centrais dos discursos de senadores/as críticos/as à gestão do governo na pandemia.

Além das questões propriamente relativas à pandemia, o espaço da CPI também nos permitiu refletir sobre a relevância da presença das mulheres nos espaços políticos. Já no início do funcionamento da comissão houve a polêmica sobre a participação da bancada feminina com direito a voz nas sessões da comissão, episódio que foi discutido nesta coluna[1]. Posteriormente, a líder da bancada feminina foi chamada de descontrolada, numa evidente expressão de violência política de gênero, pelo Ministro da Controladoria Geral da União durante seu depoimento. Tais fatos demonstram como a atuação política das mulheres e sua contribuição para os rumos da investigação se tornou um tema importante de reflexão na CPI.  

Na votação do Relatório Final, duas senadoras destacaram a relevância da atuação da bancada feminina no âmbito da comissão. A senadora Eliziane Gama (Cidadania – MA) enfatizou o desafio enfrentado pelas senadoras e os ganhos institucionais conquistados ao disputarem o espaço: “Esta CPI que hoje finaliza com a votação deste relatório, ela esgarçou […] o preconceito contra as mulheres brasileiras, porque isso foi colocado nesta comissão, não por falas, mas por atitudes. E daqui saiu o encaminhamento para que nenhuma outra comissão no Senado Federal funcione sem a presença de uma mulher. Isso é um marco, a CPI faz história no Brasil, ou seja, nós temos a partir de agora um novo momento para o Parlamento brasileiro”.

Já a líder da bancada feminina, Simone Tebet, afirmou que a CPI “foi uma arena para que pudéssemos mostrar ao País e a cada Senador da República o nosso valor e o nosso trabalho que estamos fazendo aqui. Repito: a CPI foi a grande arena de teste para a bancada feminina”. A senadora usou seu tempo de fala para destacar  inúmeras contribuições que as integrantes da bancada trouxeram à investigação e seus desdobramentos como, por exemplo, no depoimento do deputado Luís Miranda e do ex-chanceler Ernesto Araújo, na iniciativa para o cancelamento do contrato da empresa VTCLOG, entre outras. 

Tebet rememorou os episódios desafiadores enfrentados pelas senadoras: “É verdade que nem tudo foram flores, mas também soubemos transformar as pedras e pedregulhos no caminho para que pudéssemos educar o Brasil. Em rede nacional, todos perceberam que não é mimimi, que a mulher realmente sofre violência política, que nós somos agredidas diariamente, […], nós somos constantemente interrompidas […]”. 

A relevância da presença das senadoras na comissão também se expressou na redação do Relatório Final. O texto do documento incorporou diversas contribuições da bancada feminina, constituindo, inclusive, uma seção específica para abordar os impactos da pandemia na vida das mulheres. O Relatório reúne dados sob o argumento da necessidade “da adoção de políticas públicas compensatórias, que foram desprezadas pelo governo” para atenuar as desigualdades que as mulheres e outros segmentos sociais viveram diante da pandemia.

Entre os impactos, a comissão destaca o maior percentual de contaminação entre mulheres. Como fator explicativo, o documento traz a associação das mulheres às atividades laborais ligadas ao cuidado e à limpeza, que em virtude de suas especificidades colocaram-nas em maior vulnerabilidade e exposição ao vírus. O Relatório faz ainda menção a Rosana Aparecida Urbano e Cleonice Gonçalves, as duas empregadas domésticas, mulheres negras, que constaram entre as primeiras mortes registradas por Covid-19 no País e que provavelmente se contaminaram no local de trabalho.

Tomando os óbitos como referência, o documento chama atenção para o descaso do governo federal diante da mortalidade materna por Covid-19. Destacando pesquisas da Fiocruz e Rede de Mulheres Cientistas, o Relatório afirma que foram registrados 554 óbitos em 2020 e mais de mil óbitos até abril de 2021, evidenciando assim a ausência de esforços do Ministério da Saúde para atuar com as grávidas e puérperas.

As repercussões da pandemia nas condições econômicas das mulheres também são fatores explorados no Relatório. A redução da participação no mercado de trabalho atingiu 5%, sendo esse cenário mais agravado quando se trata das mulheres negras. De acordo com o documento, na perspectiva trabalhista, as mulheres foram gravemente prejudicadas, pois ocupam as posições mais precarizadas, geralmente sem proteção previdenciária. Tal problemática se adensou, cabe destacar, no caso das mulheres que chefiam suas famílias.

Os impactos em termos da violência contra as mulheres são outro aspecto tratado no Relatório. No contexto da Pandemia, houve queda nos registros de ocorrência de violência nas delegacias. As solicitações de Medidas Protetivas e os chamados de violência doméstica às polícias pelo 190 aumentaram, no entanto, ao longo do ano de 2020.

A contribuição da bancada feminina ao documento trouxe à tona os desafios enfrentados pelas mulheres brasileiras no contexto da pandemia: sobrecarga de tarefas domésticas e de cuidado, em virtude de fechamento de escolas e creches e outros serviços públicos; perda de trabalho seja ocupação de postos precários, seja pela dificuldade de adaptação ao home office; maior suscetibilidade à violência doméstica e familiar; além dos agravos diante da contaminação e adoecimento pela Covid-19 pela negligência do governo federal.

O consenso nem sempre é a marca quando se trata da atuação da bancada feminina. Como aponta Maíra Kubik, em seu estudo sobre a bancada na Câmara Federal, há inúmeros desacordos e desafios para definir as linhas de ação e as prioridades das mulheres quando organizadas no legislativo. No caso da CPI da Pandemia, as senadoras revelaram, portanto, a defesa de uma da política da presença e da atuação da bancada feminina articulada e consensual com vistas a evidenciar os desafios enfrentados pelas mulheres brasileiras, realizando proposições para atenuá-los.

Monalisa Soares

Doutora em Sociologia e professora da UFC, integra o Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia e se dedica a pesquisas na interface da comunicação política, com foco em campanhas eleitorais, gênero e análise conjuntura.