Bemdito

Síndrome do copo vazio

A escritora Natalia Timerman aborda perda e rejeição em entrevista sobre seu romance "Copo vazio"
POR Jordana Herzog

“É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho,
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor.
Que a dor ocupa metade da verdade,
A verdadeira natureza interior.
Uma metade cheia, uma metade vazia.
Uma metade tristeza, uma metade alegria.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.”
Gilberto Gil

Em “Copo vazio”, de Natalia Timerman, conhecemos Mirela: uma jovem arquiteta paulista, inteligente e bem sucedida. Cedendo à pressão da irmã, Mirela se junta ao Tinder e conhece Pedro, por quem se apaixona. Depois de meses de jantares, livros, discos, lençóis e “eu te amo” compartilhados, Pedro desaparece da vida de Mirela sem qualquer explicação, ignorando suas inúmeras mensagens e a bloqueando das redes sociais. Dá-se início então a um pesadelo compartilhado por qualquer um: ser rejeitado pela pessoa amada. Pior: ser rejeitado sem término. Mirela é roubada dos clichês de “Não é você, sou eu”, ou “Não estou procurando um relacionamento sério agora”. Pedro não conheceu outra mulher. Nas simples e pontuais palavras de nossa protagonista: “Tinha uma pessoa na minha frente e agora não tem mais, eu tento entender e não consigo”.

O breve e genial romance de Natalia Timerman é sobre o ghosting, fenômeno das relações contemporâneas em que uma das partes desaparece da vida da outra completamente, sem despedida, sem cerimônia, sem “sinto muito”. É uma nova modalidade de rejeição, potencializada pela internet, já que comumente somos deixados com  incontáveis stories da pessoa que nos rejeitou seguindo feliz e indiferente com a sua vida, com copos cheios, enquanto estamos no quarto chorando ao som de Olivia Rodrigo aos 30 e poucos anos de idade, temendo encontrar a tal pessoa no supermercado.

A verdade é que, independente de quem e quando, os sentimentos implicados na situação de ser rejeitado se repetem com dolorosa cadência a cada separação. Através de Mirela, a autora nos leva para esse lugar familiar, mas não aconchegante: querer deixar de sentir. Querer sentir menos. Querer outra vida, ser outra pessoa. Querer entender. Querer voltar no tempo e não aceitar um convite. Passeamos por sentimentos de tristeza, raiva e muitas vezes culpa enquanto revisitamos memórias. Em especial no ghosting, na nossa tentativa de entender o porquê, nosso lado emocional pode tomar as rédeas e implantar em nós perguntas como: “o que eu fiz de errado? Disse algo errado? Não sou interessante?”, acarretando em um espiral pelo qual nossa auto estima se esvai.

No início da leitura, me flagrei julgando algumas atitudes da personagem. Com tantas ligações e mensagens pelas quais Mirela obsessivamente tenta contatar Pedro após o sumiço, a palavra exagerada me veio à mente. Aqui confrontei meu próprio machismo estrutural, já que com frequência atribuímos a palavra exagero para reações de mulheres. Há um genial capítulo em que Timerman coloca, literalmente, Mirela no divã em uma sessão de análise, no qual ela tem insights maravilhosos sobre a experiência de rejeição sob a ótica feminina (ainda que a protagonista não perceba a lucidez do próprio pensamento). Segue a passagem: 

Eu mesma tava me perguntando se não era um exagero (…) a gente passa a vida toda escutando que precisa ter alguém, a gente mulher, né?. e nem só escutando, a gente passa a vida toda assistindo filme de conto de fadas, novela, viveram felizes para sempre (…) a vida toda ouvindo de mãe, de tia, de vó, de pai, a vida toda desde criança já sabendo que uma mulher precisa ter alguém, precisa ser em dupla, ter um par, senão é como se fosse menos, ou até se não fosse nada (…) E daí foi que eu pensei, escutando de mim mesma essa palavra ‘exagero’, que quando a pessoa que a gente finalmente escolheu pra ser nosso par, nossa dupla, nosso passaporte pra felicidade (…) simplesmente some e a gente perde o chão, aquele chão que ensinaram pra gente a vida toda que pra uma mulher é só do lado de um homem, aí é a gente que é exagerada, sai dessa, supera, e o exagero de sofrer tanto agora é nosso, na nossa conta de novo, e não na expectativa, da certeza implícita de que uma mulher só pode ser alguém com um homem.”

A reflexão não poderia ter sido melhor escrita por Timerman: o exagero muitas vezes reside nas expectativas impostas a nós mulheres pela sociedade, pela nossa família, pela mídia, por homens. Essas nuances da cultura patriarcal potencializam a dor feminina no término, e ainda somos aviltadas por como reagimos em um. 

Tive a oportunidade e honra de conversar um pouco com Natalia Timerman sobre sua obra, com exclusividade para o Bemdito.

O título do livro me remete a “síndrome do ninho vazio”, já que o sentimento de perda é central no livro. Qual foi sua inspiração para escolhê-lo? 

Minha inspiração foi a música do Chico Buarque na voz do Gilberto Gil, que tem um pouco de cada uma dessas coisas que você diz e que é tão linda, mas depois outros significados foram se revelando, por exemplo na circularidade do livro, que começa e termina no futuro, o que remete à obsessão, que também é circular; a transparência do copo, dizendo de um narrador que nos faz ver dentro da Mirela, como se ela fosse transparente; e também o copo cheio que Pedro deixou cair, remetendo à relação que ele não conseguiu sustentar. 

A parte que mais me marcou foi a da sessão de terapia. Enquanto homens são ensinados a conquistar o maior número de mulheres possível, nós somos ensinadas a procurar um príncipe encantado. Falando de uma perspectiva hétero normativa, é possível que tenhamos uma real tendência a sofrer mais com términos do que os homens?

Talvez tenhamos uma tendência real a sofrer mais, mas que é socialmente construída, alimentada por um imaginário em que as teorias, as histórias, as narrativas sobre mulheres eram, até bem pouco tempo atrás, escritas por homens. Esse “real” não significa, necessariamente, que essa tendência seja inata, natural ou irreversível. É algo sobre o que tenho pensado, ainda não cheguei a uma conclusão sobre isso; talvez não seja possível concluir nada definitivamente, porque nenhum olhar sobre nós mesmas é suficiente, nem o biológico, nem o social, nem o filosófico, nem mesmo o poético — talvez o poético sustente justamente essa insuficiência.

Eu mesma me flagrei pensando que Mirela estava sendo exagerada. Há uma parte em que perguntam para ela “ainda encanada por causa daquele cara?”, e o “ainda” lhe soa como uma ofensa. Por que somos tão impacientes com essa dor feminina? 

Tem algo de irritante nessa dor, nessa insistência, e talvez a irritação tenha a ver com algum tipo de identificação. Com já ter estado nesse lugar, ou com sentir aversão a ele. Porque tudo o que nos toca, tudo o que nos afeta, afinal de contas, nos diz respeito. 

É o século da comunicação, e ainda assim Pedro desaparece sem explicações. De que forma acredita que a internet afeta nossa habilidade de se comunicar sinceramente?

O século de comunicação é feito de um excesso que na verdade é uma falta. Estarmos disponíveis o tempo todo, por exemplo, afeta a qualidade de nossa presença; a comunicação em demasia nos impede de estarmos com nós mesmos, e então como que perdemos o lastro para qualquer legitimidade na relação com o outro. 

Muitas vezes nós mulheres, até as famosas, são culpabilizadas por términos, como se falhassem na sua habilidade de “segurar um homem”. No caso do ghosting, é comum ver mulheres se perguntando o que fizeram de errado. Por que acha que isso ocorre?

Isso ocorre, me parece, porque o desaparecimento súbito e sem explicações de alguém prejudica nossa possibilidade de elaboração do fim. Preenchemos esse vácuo com fantasia, e a culpa se alimenta muito de fantasia. 

Sua experiência como psiquiatra inspirou a obra de alguma forma?

Tudo o que sou está, de alguma forma, no que eu escrevo, então sim, minha experiência como psiquiatra também está lá.

Acredito que somos um pouco Mirela, somos um pouco Pedros, somos humanos. Após uma rejeição, continuamos “sozinhos, orgulhosos e um tanto doloridos”. Recomendo a leitura pela dose cavalar dessa beleza humana.

Jordana Herzog

É graduada em Psicologia e atua como professora de língua inglesa. Também é tradutora e criadora do perfil literário @fortalendo no Instagram.