A barca sempre volta no Natal
Ler Lygia Fagundes Telles é como descascar cebolas.
A camada mais profunda das suas histórias abriga o miolo concentrado da humanidade, mas, antes, é preciso arrancar com rapidez a fina casca que as envolve. Cuidado, seja delicado, a casca pode rasgar. O ardor das lágrimas é quase inevitável. Às vezes, até reajo com violência, mas que diabos eu sempre choro ao descascar Lygia.
Em 1996, durante um programa de entrevistas, José Castello perguntou à Lygia contra que medos ela lutava quando escrevia. Foi o único momento, em uma hora e trinta de sabatina, que ela ficou sem palavras. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco, ela recorreu a Drummond, gesticulou, fez comparações com polvos que soltam tintas quando apavorados, e, por fim, disse: é preciso vencer esse medo através… por exemplo, eu acredito em Deus.
Sinto a cebola atingir meus olhos.
Durante anos, Natal na Barca me invadiu como um relato de fé, como seria inseguro viver sem Deus.
“Deus – repeti vagamente”.
Reli o conto na noite de vinte quatro de dezembro de 2021.
O velho bêbado sempre aparece no Natal. Ele, que antes figurava como adorno, agora, é o símbolo daqueles que não querem pensar, daqueles que só desejam um pouco de dopamina e letargia para aguentar mais um ciclo de desesperança. Falar sozinho, ser esquecido e dormir, isso é tudo que o velho bêbado faz ao cruzar o rio de barca. Me pergunto se não teria sobrado uma dose de cachaça para mim, mas opto por seguir acordada, mesmo que apática.
Logo, conduzida pela frieza da narradora, me aproximo de um dos outros passageiros da barca: a mãe que acalanta o bebê moribundo. Ela conta que perdeu o outro filho, o mágico. O menininho de quatro anos disse que faria uma mágica, e voou. E o marido? Mandou uma carta, foi embora. Não esboço surpresa, diferentemente da primeira em vez que li o conto.
A admiração pela força da mãe santa e confiante foi substituída pela raiva do pai ausente: o boi de presépio. Aos quarenta e um anos, já não consigo mais naturalizar mães solitárias e destemidas, me revolto com a aceitação do modelo mariano, ainda que eu esteja enfiada dentro dele até a goela.
A serenidade da mãe ao relatar cada trágico acontecimento incomoda e a narradora fala por mim: “a senhora é conformada”.
“Tenho fé, dona”, ela não fraqueja. Conta que, durante um sonho, Deus a guiou até o filho morto, que foram tantos beijos.
Deus é o inconsciente, nunca nos abandona.
Então, a morte reaparece. Dessa vez, acho que a mãe não vai aguentar. Invejo a resignação dos que creem e rezo um pensamento mágico: um raio não pode cair duas vezes no mesmo local. Procuro qualquer coisa que não seja Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Como aquela mãe suportará mais uma perda? Agradeço por Deus existir. E o confronto entre o absurdismo da narradora e a fé materna inabalável mudou de lado, ele não está mais em personagens diferentes, está em mim. Só que, pela primeira vez, entro na barca e pergunto: quer que eu segure seu bebê?