Bemdito

Playlist colaborativa

Coleções de notas musicais e seu modo próprio de contar histórias
POR Raisa Christina

Quando nasci, tu já experimentavas a velocidade subindo pelo estômago, espalhando os cabelos na cara, enquanto te deslocavas sobre o patinete numa cidade não muito longe da minha. Na estante de casa, havia um espaço distinto para os vinis de meu pai. Lembro-me bem de uma coletânea cuja capa de fundo magenta contrastava com o azul esverdeado dos olhos de Elvis. No toca-fitas da velha Belina, soavam Beatles, Caetano e Raul Seixas. O que teus ouvidos de criança experimentavam naquele tempo?

Depois da fita cassete, surgiu um disco espelhado que cabia inteiro na mão. No período de um ano, caminhei alguns quarteirões repetidas vezes para alugar o “Nevermind” e o “Neon ballroom” na finada locadora de CD’s do bairro. Não sei se chegaste a fazer o mesmo em tua cidade, mas sei que, dentro das caixas frágeis de acrílico, os disquinhos vinham cheios de arranhões e digitais engorduradas, que eram a prova do calor adolescente em contato com o rock na caatinga. Aquilo me emocionava.

Pouco depois, meus irmãos e eu aprendemos a baixar músicas no ritmo da internet discada. Numa das várias partes do computador, acopladas ao monitor volumoso e esbranquiçado que ocupava um móvel inteiro na lateral da sala, instalamos a tão sonhada gravadora de CD. Assim me ocorreu um prazer até então desconhecido: passei a criar sequências de músicas em mp3, gravar num disquinho virgem apertando o ícone “burn” e em seguida dedicar a alguém. Levava essa tarefa muito a sério e obviamente perdi a conta de quantos nomes de meninos – que ainda não eram tu – escrevi com a caneta permanente sobre a liga metálica. 

Neste alvorecer espantado de século vinte e um, há CD’s no fundo das gavetas. Os vinis sobreviveram. As fitas cassetes tornaram-se objetos vintage. Muitos ouvintes deixaram de baixar arquivos de música para a memória de suas máquinas e hoje, assim como tu e eu, utilizam serviços de fluxo contínuo de dados que dão acesso a vastos conteúdos na rede. Parece texto técnico, mas este é apenas um relato que precisei fazer desde que inventamos uma playlist colaborativa, na qual certos dias insiro músicas compulsivamente. 

Eu, que não costumo usar fones de ouvido, às vezes recorro a eles para uma experiência solitária e menos expansiva com a música. Enquanto as faixas seguem no modo aleatório, entre uma canção doída tão familiar – incluída por mim – e outra balada esquecida – incluída por ti -, penso no valor do material que fomos ali reunindo. Cada música vem como se derramasse em mim, em ti, um redemoinho de sensações inesperadas ou mil memórias conturbadas de diferentes épocas. Trata-se de um complexo de bens simbólicos inestimáveis. É apenas uma playlist, mas é também nosso jeito turvo de existir.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.