Um caldo (tóxico) de Brasil em quatro atos
(Este texto com escrito em co-autoria com Magali Dantas*)
ATO 1 – QUE HORAS ELA VOLTA?
(A música “A carne“, interpretada por Elza Soares, abre o Ato 1).
Cena 1. No dia 27 de abril de 2013, a ex-empregada doméstica e deputada federal Benedita da Silva, a Bené, sobe ao púlpito da Câmara dos Deputados como relatora do projeto de emenda constitucional conhecido como a “PEC das domésticas”[1]. Ela veste o uniforme azul escuro com colarinho e barrado branco característico das colegas. A mudança na constituição garante jornada de trabalho de 44 horas semanais, FGTS, pagamento de horas-extras e férias remuneradas àquelas mulheres que “são como parte da família” mas vivem em quartos sem janelas.
Cena 2. Ouve-se uma agitação retumbante nos blocos da capital do Brasil. “Foi como se tivessem largado uma bomba. E agora? Se perguntavam todos”, diz uma cliente ao vendedor do comércio de obras de arte no Lago Sul de Brasília.
ATO 2 – BRASIL LIVRE (DE QUEM)?
(A música “Podres Poderes’‘, interpretada por Caetano Veloso e Elza Soares no Chacrinha, abre o Ato 2).
Cena 1. Junho de 2013. Manifestações de rua, convocadas pelas redes sociais, mobilizam multidões. Do movimento “sem bandeira partidária” surge uma geração de parlamentares – sim, com partido.
Cena 2. Um ano depois, a classe média vai às ruas em apoio a uma sanitização do Brasil contra a corrupção – combinada ilegalmente entre o juiz e o procurador. Enquanto isso, as famílias distintas brindam com espumante servido pela mulher uniformizada de colarinho e mangas de barra branca.
ATO 3 – ELA NÃO VOLTARÁ
(a música “Pequena memória para um tempo sem memória“, interpretada por Elza Soares, abre o Ato 3)[4]
17 de março de 2020. 2 anos e 3 dias depois do assassinato de Marielle Franco, Cleonice Gonçalves, colega de profissão de Bené, morre contaminada pelo vírus da Covid-19. 120km de Miguel Pereira ao Leblon, onde morava durante a semana no quarto sem janela. Os patrões, ao retornar da Itália, testaram positivo para covid-19 antes de Cleonice ser infectada. Serão quase 700 mil mortos – a maioria companheiros de cor e de uniforme de Cleonice – por um projeto de governo “sem partido” que atrasa vacinas e ataca medidas sanitárias.
ATO 4 – ABRE CAMINHO
(A música Exu nas escolas, interpretada por Elza Soares, abre o Ato)
Cena 1. Abril de 2022. É dia de carnaval no Rio de Janeiro e aniversário de 80 anos da Bené. EXU é celebrado e coroado campeão da maior festa do planeta!
Cena 2. Elon Musk arremata uma rede social para chamar de sua, a preço de PIB – ou de erradicar a fome -, depois de já ter financiado uma viagem para fazer “xixi nas estrelas”[6].
Cena 3. Horas depois, em meio à Guerra da Ucrânia, membros do governo dos Estados Unidos – ligados às pastas de política, energia e meio ambiente – desembarcam em Brasília e encontram-se com “jovens empreendedores” e com o ministro das Relações Exteriores do Brasil. Entre os assuntos divulgados como pauta dos encontros está a justiça racial.
O condão que liga os três atos – grão ínfimo do nosso existir multicênico – é o infeliz e voraz apetite da sociedade brasileira pela injustiça. O economista Mário Theodoro[2] a define como “violenta, autoritária, elitista e medíocre. Essa é a sociedade desigual.”
No seu conto “A Resistência” e em suas falas por aí, José Faleiro[3], o best-seller de chinelos, é cristalino quando substitui a expressão “onda” conservadora por “resistência” conservadora: “A resistência é deles. A resistência é de quem não quer perder os privilégios e o protagonismo… pertence a quem não consegue engolir a amplitude e a profundidade que o conhecimento, a reflexão e os debates têm tomado no seio do povo brasileiro”. Isso tudo, segundo ele e nós, por esse pequeno desequilíbrio que levou novos corpos e cores às universidades.
O sociólogo Marcelo Ribeiro, a urbanista Thêmis Aragão e a administradora Juliana Teixeira enfatizam que, quando um modelo de conforto baseado na exploração do/da outro/a é sacudido pela entrada na universidade ou pela concessão de direitos sociais e trabalhistas às empregadas domésticas, o que o privilégio sente é medo de morrer. A adesão das classes A e B ao desejo de um “Brasil melhor” foi impulsionada pela recente tentativa de formação de um estado de bem-estar social e transferência de renda – uma pequena pepita na balança que sempre sobe para o mesmo lado.
Para a manutenção de tudo como sempre foi, vale ganhar jogo televisivo de popularidade com cartas marcadas, notícias falsas, dados viciados ou ‘bots’, desde que o vencedor corresponda ao gosto colonizado de estereótipos de aceitabilidade que sempre coroaram um certo gênero, uma certa classe, uma certa faixa etária, um certo comportamento social execrável, mas tolerado divertidamente – sobretudo se afeta “só” às mulheres. O vício na injustiça passa a perna na democracia, se for preciso; importa conspiradores de carreira e investe o equivalente a uma viagem espacial para preservar o direito de continuar enganando quem cair na rede. São os espertos ao contrário, como denuncia Estamira. Fazem qualquer negócio para não desigualar o privilégio. Meu pirão primeiro há 500 anos.
Para as tulipas de cava saírem às ruas, para o mercado de capitais se envolver num Brasil “livre” e com bonecos infláveis, alguém precisa empurrar o carrinho com a criança. E todos sabem a cor da pele de quem empurra o carro e de quem brinda. Pintura de Debret. A injustiça é a estética do Brasil. E quem ainda suporta tanta cafonice?
Basta! Nós queremos um Brasil que tem a alegria como estética. O carnaval sempre foi de EXU e neste ano ele brilhou no topo do mundo. EXU é múltiplo, contraditório, dono dos caminhos sem obviedades – as encruzilhadas. O comunicador, o feirante, o malandro, a arte e a intelectualidade. A rua, a argumentação. Pensar EXU é bugar a história única. A boca que tudo come, em EXU não se conhece a fome. Ele é “plenitude do ser brasileiro”, segundo Vinícius Natal. O que diz a sociedade viciada na injustiça sobre EXU? “Ele é o Diabo!”. O inferno são os outros, diria Sarte.
Pois foram abertas as portas do céu e do inferno e delas saiu o exército dos mortos em vão. Os invencíveis porque já vencidos. Os invulneráveis porque já extintos, diria Primo Levi. As grandes mudanças sociais, e também as subjetivas, começam pelos detalhes, por movimentos sutis que aparentam ser mínimos. E quem experimenta o gosto doce da cidadania, não esquece. As filhas das Benés e das Cleonices já sabem que seu desejo de ocupar qualquer cômodo da casa é legítimo. Se gozam e riem no asfalto, fora do camarote, e com uma caixa de gelo na cabeça, então são capazes de tudo! Quem tem medo de EXU? O privilégio Está-na-mira daquele que mata um pássaro ontem com a pedra que atirou só hoje.
*Magali Dantas nasceu na periferia de Porto Alegre, é graduada em Ciências Sociais pela UFRGS, mestre em Governança e Desenvolvimento pela ENAP, pesquisa e opera políticas públicas para a igualdade racial.
*Imagem do quadro “O mais importante é inventar o Brasil que queremos”, gentilmente cedida pelo artista Elian Almeida.
[1] Optamos pelo uso da expressão “empregada doméstica” por entender que ela evidencia, no contexto dessa escrita, o peso da sociedade desigual suportado por essas mulheres. Tramita na Câmara Projeto de Lei 4787/09 que altera a denominação “empregada doméstica”, considerada racista, para “funcionário do lar”. A origem da expressão “doméstica” remonta à condição dócil, domada e domesticada que as pessoas escravizadas – cuja força de trabalho era explorada no trabalho doméstico, de cuidado, sexual e até reprodutivo – assumiam como estratégia de sobrevivência, visto que, os trabalhos da casa eram menos extenuantes e os castigos físicos mais brandos.
[2] A Sociedade Desigual- racismo e branquitude na formação do Brasil. Editora Zahar.
[3] Mas em que mundo tu vive? Crônicas. Editora Todavia.