O caso, a causa e o acaso
Em uma era marcada por um tsunami de informação, fazer perguntas e abraçar diferenças se tornaram habilidades fundamentais
Alisson Sellaro
sellaro@sellaro.co
Lembro que, em um dado momento da minha infância, todos na casa em que eu vivia fumavam, exceto eu e o meu cachorro. Mas, mesmo não sendo fumante, acabei me tornando parte fundamental do “ciclo do cigarro”. Explico: meu pai gostava de tomar café antes de fumar. Com frequência, ele pedia para eu ir até a cozinha, encher uma xícara pequena que já ficava separada para a função, e servi-lo antes que ele acendesse o mal-cheiroso.
Pequeno e levemente desastrado, depois de uns dois ou 25 acidentes no trajeto, decidi ser melhor por a xícara sobre um pires e evitar sair derramando café pela casa. Meu pai aprovou a ideia e, como prêmio, passou a sempre deixar um dedinho de café para mim quando eu o servia sem derramar. Desde então, o café passou a ser uma das bebidas que mais gosto. A minha iniciação no mundo do café foi incentivada pelo hábito do meu pai. É o meu caso, individual, mas seria razoável dizer que, em geral, pais fumantes criam filhos que adoram a bebida?
Existem dois conceitos em estatística que ajudam a entender essa pergunta: correlação e causalidade. Os nomes podem assustar a princípio, mas garanto ser bem fácil de entender o que eles significam. Existe uma correlação entre duas coisas quando há alguma ligação entre elas. No exemplo do café, há uma correlação entre meu pai fumar um cigarro e eu tomar um gole de café. A causalidade é uma ideia mais restrita. Só há causalidade quando fica provado que uma coisa (efeito) não aconteceria sem que outra coisa acontecesse antes (causa). Olhando novamente para o meu exemplo, nada impedia que eu tomasse um café sem que meu pai fumasse. Ou que ele fumasse sem eu tomar o último gole de café da xícara. Aliás, na verdade, quase sempre eu tomava o café e, só então, ele acendia o cigarro.
Nós, humanos, somos biologicamente programados para encontrar padrões. Esta característica vem garantindo a nossa sobrevivência como espécie há milhares de anos. É fácil transformarmos em nossa mente o relacionamento entre dois fenômenos – uma simples correlação – em uma cadeia de causa-efeito – causalidade. Mas essa substituição nem sempre é correta.
Assim como o exemplo do cigarro e do café, há milhares de outros exemplos que mostram uma correlação sem a existência de causalidade. Se você procurar por “correlações espúrias”, você irá encontrar dados que mostram que, de 1999 a 2009, os investimentos em ciência e tecnologia nos Estados Unidos tinham uma alta correlação com o número de suicídios por enforcamento. Ou que o consumo de pizzas de mozzarella tem correlação com o número de novos doutores em engenharia civil.
Considerando esta tendência humana de generalizar demasiadamente, fomos desenvolvendo e aperfeiçoando o método científico. Fazer ciência e desenvolver tecnologia requerem, antes de qualquer outra coisa, fazer perguntas. Muitas delas simples: o que estamos observando? Por que este fenômeno acontece? Como ele se desenvolve? Com que frequência? Quais os efeitos imediatos? Devemos reduzir/ampliar seus efeitos? A complexidade da ciência nasce da forma de como responder a estas questões com o rigor necessário.
Ciência é, antes de tudo, um processo de crítica permanente em que se busca rejeitar teorias, e não prová-las. Analisar os métodos utilizados para responder aquelas perguntas simples de que falamos e, depois, reproduzi-los para comprovar que as respostas que obtemos são as mesmas. Vejam: o jogo da ciência é um jogo de encontrar erros. É só depois de muita análise, sem equívocos significativos, que um grupo científico é capaz de afirmar algo. Identificar correlações e diferenciar causalidade são duas das principais preocupações do mundo científico.
Decidir o resultado antes de analisar as informações, dados e evidências é o oposto de fazer ciência. Existe uma definição para este comportamento: preconceito. Buscar dados que provem um ponto, ignorando qualquer informação que vá no sentido contrário, alimenta a característica biológica humana de ver padrões mesmo onde eles não existem.
Para evitar esse erro cognitivo, recomendo uma pitada ou duas de ceticismo. Mas tome cuidado! Se tornar um incrédulo absoluto não ajuda. Faça perguntas que desafiem a sua teoria. Busque furos na sua lógica. Converse com outras pessoas, de preferência que tenham conhecimento do assunto em questão, e investigue se as conclusões a que elas chegam são similares às suas. Se não forem, verifique onde está a divergência.
No fim das contas, é bom lembrar que verdades e opiniões são coisas distintas. Outro dia, esbarrei num comentarista de jornal dizendo que o primo de um amigo se livrou de pegar o vírus da Covid-19 tomando um chá de alho, limão e gengibre. A receita milagrosa foi bebida diariamente desde março de 2020 e o primo do amigo não adoeceu. Logo, o chá seria o salvador, segundo o comentarista.
Meu pai parou de fumar há anos, mas continuei gostando de tomar café. É um hábito diário que me acompanha desde meus dez anos. Como também não adoeci de Covid, algum desavisado pode acreditar que me livrei do maior desastre de saúde pública da história recente por causa do cigarro.
Alisson Sellaro é gestor de tecnologia e cientista de dados.