O medo anda por dentro do meu coração
Preciso caminhar para subir nas costas do leão que me assusta
Quase comecei a escrever sobre o medo que tive de perder minha mãe para a Covid-19. Nunca mais poderia encontrá-la, então quando escolho o verbo “perder” é só um disfarce para não ler que eu tive medo que ela morresse. Um medo de que faltasse o ar nos pulmões dela e no meu juízo. Um medo que tenho visto em muitos olhos e casas. Entretanto, ainda não consigo organizar as palavras que circundam esse medo. Como ele ainda está aqui, real e sorrateiro, não consigo observá-lo na palma da minha mão. Um dia, poderei esticar o braço e contemplá-lo, já miúdo e domado. Quero acreditar.
Se o medo paralisa, caminhar sempre foi uma estratégia para compreender a sobrevivência no passo e dissipar o aperto no peito. Fiz do gesto um processo de criação, uma pesquisa de mestrado e, principalmente, uma investigação sobre como seguir em frente. Sim. Um clichê. Moving on, em inglês. Sempre escuto nos filmes. Um pé, depois o outro e assim sucessivamente até o corpo compreender que sempre há formas de estar em movimento.
Gosto de caminhar em ruas lotadas e em parques com formigas e pássaros. Sinto falta de estar entre uma esquina e outra do mundo, em silêncio, ou conversando com um rapaz que me chamou atenção pela frase da camiseta: eu amo minha mãe. Tenho saudades de reparar na testa franzida de alguém que caminha apressado e de ver, ali, o meu rosto. Caminho para espairecer, para conhecer e até para me perder. Caminho para subir nas costas do leão que me assusta. Vi uma menina fazer isso na rua e aprendi.
Quieta, isolada e distanciada, recupero os passos para andar em mim. Eu já tive medo de perder minha mãe antes, nos anos 90 e nos 2000, por razões concretas ou imaginadas. Talvez o medo também saiba sobre caminhos e crie rotas dentro de nós. De repente, ele chega e pisa fundo. Depois, na ponta dos pés, começa a se espalhar sem ser notado. No dia 3 de outubro de 2015, quando cheguei de uma viagem longa, vi minha mãe de máscara depois da primeira quimioterapia. Acho que, naquele dia, eu abri a porta e o medo entrou, mas eu não quero escrever sobre isso agora. O medo deu um cochilo para que eu possa seguir em frente e também ao lado dela, um dia depois do outro.