A esperança que vem da floresta
Se olharmos retrospectivamente para as grandes lideranças do Brasil da era pós-1988, teremos dificuldades de nomear mulheres no círculo de influência mais relevante da política democrática nacional. Marina Silva é uma delas.
Senadora pelo Acre entre 1995 e 2011, ministra do Meio Ambiente durante o ciclo de governo de Lula e três vezes candidata à presidência, em 2010, 2014 e 2018, Marina incorpora em sua identidade características que a tornam uma personalidade única no conjunto partidário do Brasil. Sua posição, assim como a da Rede Sustentabilidade, seu partido, são estratégicas na composição das alianças que selarão o destino nas eleições presidenciais em 2022.
Afinal, o que pensa sobre esperança, fé e meio ambiente essa mulher da floresta, de convicção religiosa forte, ativista do meio ambiente e do protagonismo feminino? Em entrevista exclusiva ao Bemdito, Marina Silva nos oferece suas respostas.
Próximas eleições e alianças possíveis
Bemdito // Qual deve ser o peso da pauta ambiental no debate eleitoral que se anuncia para 2022?
Marina Silva // Certamente, será bem menor do que deveria ser, pelas urgências e necessidades que o tema exige, e as inúmeras oportunidades que proporciona. Se olharmos com atenção, veremos que até mesmo a pandemia do coronavírus é parte de um desequilíbrio maior e mais complexo que está acontecendo no planeta. As chamadas “questões ambientais” são também econômicas, sociais, culturais, ou seja, ocupam um lugar central na crise da civilização, que coloca em risco a continuidade da vida humana na Terra. Essas questões são estratégicas nos acordos comerciais, na viabilidade do agronegócio, no desempenho da economia. Também são questões centrais para a saúde pública, para a situação social das populações mais pobres, nas periferias urbanas. Ou seja, qualquer proposta para governar o país deve dizer bem claramente o que fazer com o meio ambiente. Infelizmente, no Brasil, as eleições se transformaram num festival de mentiras e agressões. O debate sério de propostas foi inviabilizado. Será diferente em 2022?
Ainda não sabemos, mas é muito difícil imaginar que a educação, a saúde, as desigualdades sociais e a agenda ambiental sejam tratadas com a seriedade e profundidade que merecem.
Bemdito // A senhora afirmou, em entrevista recente, que precisamos de uma alternativa. Qual será o papel da Rede Sustentabilidade e de Marina Silva na articulação de uma possível candidatura que represente uma terceira via ao antagonismo Lula vs. Bolsonaro?
Marina // Mais que o rótulo de uma terceira via, o Brasil precisa de uma via que nos possibilite um percurso em que possamos vislumbrar algum horizonte e sair do círculo vicioso da estagnada repetição dos erros, onde a falta de projeto é preenchida pela polarização. Precisamos de um programa estratégico para o desenvolvimento do país nas próximas décadas, que enfrente as mudanças climáticas e promova a transição para uma economia de baixo carbono, que dê conta dos efeitos da disrupção tecnológica, das desigualdades sociais, que preserve a democracia e a amplie, ao mesmo tempo, promovendo o que nós da Rede chamamos de “democratização da democracia”. Esse programa, um novo pacto que envolva toda a sociedade, não existe ainda, e as forças políticas dominantes se dividem entre os que querem permanecer no poder e os que querem retornar a ele. Não se constituem em uma “via” para o Brasil no século XXI. O papel da Rede Sustentabilidade é colocar as questões estratégicas em debate e envolver a sociedade na discussão, buscar o diálogo com cientistas, movimentos sociais, empresários, trabalhadores, comunidades, todos. Evidentemente, nossa força e nossa presença são muito pequenas, mas vamos fazer o possível para que o Brasil encontre essa via para um futuro melhor.
Bemdito // Uma possível aliança com o PDT está mais distante?
Marina // Nós continuamos debatendo com o PDT e outros partidos democráticos e progressistas, chamando-os a pensar essa proposta estratégica para o Brasil. Em todos esses partidos encontramos pessoas qualificadas para debater e elaborar propostas. O PDT tem excelentes quadros e nós estamos – e queremos continuar- dialogando com eles.
Bemdito // Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, é um dos nomes mais criticados do governo de Jair Bolsonaro. A senhora já ocupou esse posto durante o governo Lula. Em que pontos se diferencia a gestão ambiental de Bolsonaro em relação ao período em que a senhora esteve à frente da pasta?
Marina // Quando fui ministra do Meio Ambiente, nós ampliamos em mais 25 milhões de hectares as áreas de proteção ambiental. Trabalhamos juntos com a Polícia Federal e o Ministério Público para fechar mais de mil falsas empresas, que atuavam na ilegalidade, e prendemos mais de 700 pessoas que cometeram crimes ambientais. Nos muitos conflitos que enfrentamos, sempre estivemos do lado das comunidades, dos povos da floresta, dos trabalhadores. Nós nunca protegemos criminosos. Então, não há termos de comparação. Salles não é um ministro do meio ambiente, é um ministro antiambiental, no governo de um presidente que promove a devastação e protege os devastadores. O Brasil tem que se livrar dessa gente, para poder voltar a ter respeito por si mesmo e para ser respeitado no mundo.
Bemdito // Proteção ao meio ambiente e agronegócio. Há conciliação possível?
Marina // Claro. As parcelas mais avançadas do agronegócio, as empresas que investiram em tecnologia e inteligência, compreenderam já há bastante tempo que o agro depende do ecológico. É o meio ambiente equilibrado e protegido que fornece água, solo fértil, biodiversidade, tudo o que o agronegócio precisa. E o mercado internacional está cada vez mais fechado para os que destroem o meio ambiente, derrubam e queimam as florestas, agridem as populações indígenas, poluem os rios. O Brasil tem um importante lugar na sustentabilidade da civilização e no equilíbrio do planeta. O agronegócio brasileiro tem todas as condições de evoluir, incorporando tecnologia, responsabilidade ambiental e justiça social. E os que insistem em manter-se numa busca agressiva, ilegal e atrasada pelo lucro rápido e insustentável, destruindo o patrimônio natural e social do país, esses ficarão para trás.
Protagonismo feminino, fé e ativismo ambiental
Bemdito // A Igreja e demais comunidades de fé têm sido um espaço fértil para articulação de candidaturas femininas. Muitas mulheres políticas têm suas carreiras fortalecidas nesses espaços. A Igreja deve ocupar esse papel?
Marina // Na Igreja, as pessoas se reúnem para cultivar a sua fé, mas também para a convivência e as mais importantes e significativas relações sociais. É natural que nesse ambiente prosperem os grupos de formação de opinião e de ação para afirmar seus direitos, conquistar melhorias para as comunidades e até mesmo para levar suas demandas ao Estado e às autoridades políticas. É um ambiente propício para o surgimento e a formação de lideranças. Mas é necessário ter cuidado para não tratar o irmão e a irmã como eleitores e não confundir o púlpito com o palanque. Instrumentalizar a igreja para fazer carreira política ou usar os cargos políticos para favorecer a igreja é um mau caminho que acaba trazendo problemas, para a igreja e para a política.
Bemdito // Sua integração à comunidade de fé teve que peso em sua trajetória política?
Marina // Teve uma importância central na formação da minha ética, do meu compromisso com a verdade, com a justiça, com a honestidade, com os valores cristãos. A fé sempre foi um fator central em todas as decisões que tomei na vida, portanto, teve importância central na minha trajetória política. Uma influência decisiva da fé na minha trajetória política é a minha constante defesa de uma das maiores conquistas das Reforma Protestante, que é o Estado laico. A ideia de que a igreja deve dominar o Estado resultou, sempre, na submissão da fé aos ditames da política. A Reforma rebelou-se contra o domínio de César nas coisas que eram de Deus e promoveu a passagem para a Idade Moderna com a separação entre Igreja e Estado. As leis do Estado devem defender os direitos e deveres de todos, os que têm a minha fé, os que têm uma fé diferente da minha e os que não têm fé. Ateus e crentes de todas as crenças devem ter, perante as leis e a sociedade, os mesmos direitos e deveres. Essa é uma conquista pela qual tenho o compromisso de zelar.
Bemdito // Como a Rede Sustentabilidade se posiciona em relação às cotas de gênero eleitorais já previstas em lei e sua possível ampliação?
Marina // A Rede se antecipou às cotas. Por exemplo, nós não temos presidente nos diretórios, temos dois porta-vozes, um homem e uma mulher. Sempre promovemos a representação igualitária e promovemos a representação das minorias. Temos nos esforçado política e programaticamente para seguir o velho ditado: “justiça boa começa em casa”. Vimos, com tristeza, que muitos partidos preencheram as cotas de candidaturas femininas com candidaturas falsas, que serviam apenas para cumprir as formalidades legais e desviar dinheiro para os candidatos reais, masculinos, é claro. Temos que aperfeiçoar a legislação, mas temos principalmente que informar as pessoas, sobretudo as mulheres, para que exijam de seus partidos o respeito e a promoção adequada de suas causas.
Bemdito // O seu partido tem algum projeto especial para fortalecer lideranças políticas femininas ligadas à defesa da floresta?
Marina // Nas instâncias de decisão e nos debates internos, da mesma forma que nas campanhas e atividades públicas, sempre procuramos fortalecer as lideranças femininas, na floresta, no campo e nas cidades. Nossa única deputada federal é, não por acaso, uma mulher da floresta: Joênia Wapichana.
Bemdito // O que a floresta pode ensinar sobre esperança?
Marina // A floresta ensina resiliência, persistência, a floresta insiste em recuperar-se e renascer sempre. É celebração da unidade e da diversidade. É uma professora, ao mesmo tempo, rigorosa e generosa. Colaborativa, porque todos os seres que a formam são interdependentes. Mas também ensina cada um a defender com tenacidade a sua permanência e o seu espaço. A floresta é verde. Enquanto existir floresta, haverá esperança.