A tragédia nossa de cada dia
Sobre a beleza das histórias triviais e o ordinário extraordinário dos dias
Desirée Cavalcante
desireecavalcantef@gmail.com
A reabertura progressiva do comércio possibilitou, ainda que com limitações, o reencontro com pequenos prazeres do cotidiano. O entrecruzar com gente nova também revelou que não fui a única a desenvolver o hábito de tentar fugir do mundo mergulhando nas pessoas.
Durante o período de isolamento social rígido, passei a me presentear com uma dose de surpresa a cada semana. Aceitando sugestões de quem não conhecia os meus hábitos e gostos, encomendava um livro por vez na livraria do bairro, sempre de autores que nunca tinha lido e, principalmente, de histórias que não remetessem ao amargor dos dias que temos atravessado. Precisei frisar algumas vezes que não poderia ser nada que falasse de algo muito trágico. Nem guerra, nem ditadura, nem violência cotidiana. Doença pode? Depende. Policial ou fantasia? Não. Tinha de ser uma história real, sobre pessoas e problemas comuns. Esse era o desafio: encontrar boas histórias triviais.
Entre acertos e decepções, a empreitada seguiu com sucesso. Com o retorno das atividades, pude, finalmente, ir ao local de onde vinha a minha surpresa semanal. Nessa ocasião, percorrendo as prateleiras, ouvi a conversa do balcão. Outro cliente procurava um livro com características similares às que eu havia elencado. Não suporto mais tanta coisa ruim, ele argumentou.
O uso da literatura como tentativa de escapar da realidade não é uma novidade. A utilidade de experimentar outra existência serve não apenas para atenuar o pensamento acerca do que ocorre ao nosso redor, mas também para acessar outra ordem de emoções.
Tenho me apegado a histórias comuns sobre indivíduos que cruzarão a vida sem deixar nenhuma marca, além daqueles pequenos rabiscos com os quais impregnamos os dias das pessoas com quem convivemos. Nomes e sobrenomes que, em uma lista suficientemente longa, são repetidos e confundidos com outros. Os sujeitos que não superarão nenhuma barreira maior do que aquela que existe dentro de nós.
Quanto mais tumultuada tem sido a relação com o mundo, com as notícias e com a sociedade, maior tem sido a importância do que aparenta ser irrelevante. A pequena tragédia do indivíduo amortece a aspereza do mundo, fazendo-nos sentir mais vivos. O reencontro com a trivialidade é a reaproximação com aquilo de que somos feitos.
Desirée Cavalcante é advogada, professora e pesquisadora na área de Direito Constitucional. Está no Instagram.