Aprender com Oyèrónkẹ́
Após 24 anos, obra de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí é traduzida para o português e chega para nos conduzir a outras possibilidades de pensar gênero, mulher e sociedade
Camila Holanda
camilasoaresholanda@gmail.com
“O gênero, como a beleza,
está frequentemente nos olhos de quem vê”
(Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí)
Gênero não existe. Pelo menos, não nas comunidades iorubás. Vinte e quatro anos separam a publicação original do livro The Invention of Women da primeira edição brasileira, que chegou às bandas de cá em 2021. A obra é uma preciosidade escrita pela nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, resultado de sua tese de doutorado. Embora tenha sido escrito mais de duas décadas atrás, tem o frescor de um livro publicado nos anos 2020.
Com o título brasileiro A invenção das mulheres – Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, Oyèrónkẹ́ entrega-nos um recurso importante para repensarmos nossos discursos, impregnados de sentidos coloniais, colonizados e – por que não – colonizadores. Esta é a primeira obra de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí traduzida para o português e publicada no Brasil. Até então, a América Latina tinha acesso aos escritos dos pensamentos da socióloga na língua espanhola, por meio de artigos e outras publicações.
A socióloga traz a abordagem das comunidades iorubás – ou Iorubalândia, como escreve, de forma crítica – para desconstruir ideias hegemônicas sobre gênero e sobre mulher, categorias que não participam do vocabulário, nem do dia a dia das sociedades iorubás. É importante lembrar que a Nigéria foi colonizada pelos britânicos de 1862 a 1960 – ou seja, há não muito tempo.
Professor de Filosofia e Bioética da Universidade de Brasília (UnB), wanderson flor do nascimento assina a tradução publicada pela editora Bazar do Tempo. Em sua nota de tradução, logo no início do livro, ele relata o desafio de trabalhar uma obra que discute a tensão entre uma língua isenta de gênero, que é o iorubá. Para se manter fidedigno à proposta da autora, ele preferiu não utilizar o masculino como signo da neutralidade de gênero, como propõe nossa gramática.
Se, no Ocidente, gênero é pensado amplamente como uma construção social e até biológica, Oyěwùmí vem nos trazer outra perspectiva, contribuindo para a teoria feminista nos estudos pós-coloniais e decoloniais. “Percebi que a categoria ‘mulher’, que é fundacional nos discursos de gênero ocidentais, simplesmente não existia na Iorubalândia antes do contato mantido com o Ocidente. Não havia um tal grupo caracterizado por interesses partilhados, desejos ou posição social”, comenta a autora.
Uma parte do livro se dedica a comentar como o pensamento social do Ocidente tem profundas raízes na biologia, quase sempre utilizando o corpo como “fundamento da ordem social”. A “ausência do corpo”, diz a socióloga, tem sido frequentemente uma precondição do pensamento racional.
“Mulheres, povos primitivos, judeus, africanos, pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de ‘diferente’, em épocas variadas, foram consideradas como corporalizadas dominadas, portanto, pelo instinto e pelo afeto, estando a razão longe delas”, escreve a nigeriana.
Mas, então, de que forma as sociedades iorubás se organizam, se não há o patriarcado julgado universal? A classificação dos indivíduos, mostra Oyèrónkẹ́, dá-se em primeiro lugar, pela “senioridade”, ou seja, pela idade cronológica. A autora dedica um tópico do livro apenas para comentar esse critério, intitulado Senioridade: o vocabulário da cultura e a linguagem do status.
“A maioria dos nomes e todos os pronomes não são generificados. Os pronomes de terceira pessoa ‘ó’ e ‘wón’ fazem distinção entre as pessoas mais velhas e as mais jovens nas interações sociais. Assim, o pronome ‘wón’ é usado para se referir a uma pessoa mais velha, independentemente do sexo anatômico”, explica Oyèrónkẹ́, sublinhando que ‘wón’ é um pronome de respeito e formalidade.
É importante ressaltar que estamos aqui fazendo uma leitura do ponto de vista iorubá sobre sociedade. A organização nas comunidades ocidentais se dá com outras dinâmicas, muitas delas em conjunturas patriarcais. É relevante pensarmos que há outras constituições e compreensões de sociedade para além das nossas – estas, sim, podem ser consideradas hegemônicas, principalmente, quando tentamos ler a sociedade iorubá sob nossa vivência, por exemplo. Proponho aqui o contrário, para que pensemos nossa compreensão de forma dissonante.
Ler e reler Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí é válido para pensarmos relações e construções sociais através da ótica iorubá, que tanto tem a nos ensinar, e nós temos tanto a desaprender para reaprender.
Camila Holanda é jornalista e mestranda em Comunicação na UFC. Escreve conteúdos com perspectiva de gênero.
Serviço
A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero
Tradução de wanderson flor do nascimento
324 páginas
Editora Bazar do Tempo
R$ 69,90
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