Bemdito

Avoante, uma arte banhada no leito do rio

Artista nordestina traz marca forte no trabalho como ilustradora e tatuadora: o olhar bonito, diverso e genuíno para a cultura popular
POR Ivna Girão
Ilustração: Avoante

Água gelada e profunda, gostosa de mergulhar e de banhar, ela atravessa, ora suave, ora avexada, os rios e as matas e faz beleza colorida por onde passa. O nome dela é Avoante, mulher artista cearense, é “ilustradora de interior, sertão-mar e movimentos”, como ela mesmo gosta de se apresentar. Para mim, ela é também a Raquel, filha da Noca, irmã do Rafinha e a neta da Dona Elita. Tive a sorte de vê-la crescer como pessoa e hoje me encanto, a cada novo dia, com a artista que ela é: a menina que enfrentou todos para realizar sonhos, que botou a voz no mundo e quebrou barreiras.

Ela passou, ainda muito jovem, em uma concorrida vaga numa universidade pública, tem um trabalho artístico maduro, autoral e forte, com raízes negras, ribeirinhas e indígenas, um traço pintado com o pé no chão do terreiro e com o corpo imerso no mangue. Tem um coração imenso e me ensina sobre coragem, sobre alçar voos. Obrigada por ser inspiração, ser imensidão, por ser “avoante mesmo”. 

Tenho no meu corpo tatuagens dela, tenho no peito muito carinho por ela. Além das paisagens de sertão e de mar, Avoante traz outra marca muito forte no seu trabalho como ilustradora e tatuadora: o olhar bonito, diverso, genuíno e respeitoso com a nossa cultura popular.

São traçados que nos botam para dançar, desenhos que nos chamam para vestir a saia e rodar, ilustrações que nos fazem sentir o gelado do barro, a textura do urucum e o vermelho do jenipapo. São carrancas que nos abençoam, são linhas para levar no corpo, pendurar na parede. Uma arte que é feito rezo, que é relicário, é patuá de saudades do vivido e do não vivido, lembranças do interior de dentro e de fora. A beleza de Avoante é cadeira na calçada em tarde ventilada, sentindo a vida passar devagar e gostosa.

Avoante é artista nordestina, tem asas no interior, mas seu estúdio de trabalho é bem fácil de chegar, basta uma volta no Benfica e logo lá ela estará. Faço um convite, conheçam: ela trabalha com desenhos autorais, aceita encomenda de artes, ilustrações e tatuagens. Entra no Insta, chama para um papo bom, marca uma visita, pede um orçamento. Tem, vez ou outra, uma promoção de um flash-tattoo. Valorize o trabalho das mulheres, divulgue as manas. Olhe o berro, escute o grito do Pavão!

Tenho lido muitas mulheres e tentado me tatuar só com elas, comprar obras feitas por elas. Um jeito bonito de me sentir bem acompanhada. Na cabeceira da cama, tem sempre Conceição Evaristo para lembrar a beleza nas resistências. Peço licença à escritora, para trazer aqui uma palavra dela que gosto muito: “escrevivência” – um termo para a sua literatura, comprometida com a condição de mulher negra em uma sociedade marcada pelo preconceito. O termo fala de uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta.

Assim, Avoante faz sua “escrevivência”. Ela cria a partir do que vive, ela desenha como quem toma banho de rio, ela pinta como quem atravessa a cidade na busca de um respiro no mar, ela tatua como quem faz revoluções entre quintais e manguetown, ela ilustra com a alegria de quem se arruma para ir para um forró. Por falar nisso, quer fazê-la feliz? Chama para uma dança. A bicha é doida por um remelexo e uma sofrência.

E para adiar o fim do mundo e trazer belezas para a sua semana, convido para conhecer Avoante, levar no corpo e na alma a alegria do seu trabalho. Viva as artistas cearenses!

Ivna Girão

Jornalista, historiadora e escritora, é coordenadora de comunicação da Secretaria de Cultura do Ceará.