Blackfriday: dia santo da religião capitalista
O Thanksgiving é um dia ritualístico, de culto pela graça dada por Deus, mas por meio de uma ação gratuita, pela qual se compartilha essa mesma graça recebida. “De graça”, divide-se, reparte-se o que se recebeu no ano. É um feriado comemorado nos Estados Unidos e no Canadá, criado no início do século XVII, que, mais recentemente, passou a ser comemorado em toda quarta quinta-feira do mês de novembro.
Como diz seu nome, um feriado em agradecimento a Deus pelos bens conquistas, pela colheita produtiva, pelo bem-estar recebido por Ele, depois de muito trabalho duro. E é também uma data que marcaria a comunhão dos ingleses colonizadores, em terras norte-americanas, com seus povos nativos, indígenas das primeiras regiões colonizadas pela Coroa Britânica.
Interessante é notar que se trata, aqui, de um dia festivo, religioso, celebrado no meio de um dos processos mais violentos da história humana: a colonização e o genocídio indígena. E este processo só pode ser bem compreendido se o for considerado como parte de um outro processo, mais amplo: a expansão do capitalismo além-mar, expansão dos reinos, dos impérios britânico, português, espanhol, dentre outros, enfim, da expansão do capitalismo colonialista.
Hoje, no século XXI, cerca de quatrocentos anos depois do primeiro Thanksgiving, esse mesmo capitalismo, agora na sua forma tardia, realista, neoliberal, cibernética, da internet 3.0 – que transita para o 5G e para o metaverso de Marck Zuckerberg – criou outro dia santo, um outro dia de culto, um novo feriado: a Blackfriday(Sexta-feira Negra). Um milagroso e excepcional dia, em que as grandes empresas oferecem, em tese, descontos nos preços de seus produtos. É um Holliday, mas não de graças, mas de louvor, de glória.
Só que não estão bem claras ainda as respostas para as seguintes questões: Qual religião e para qual deus a Blackfriday cultua?
Walter Benjamin tem um famoso texto em que seu título resume o pressuposto mais básico deste ensaio, chama-se Capitalismo como religião (1921). Influenciado pelo modo como Friedrich Nietzsche escavou a língua alemã, encontrando na origem da culpa (Schuld) o sinônimo de dívida (Schuld), e influenciado pelas sociologias de Max Weber e Georg Simmel, quando trataram das raízes calvinistas e das dinâmicas sociais individualistas causadas pelo dinheiro, Benjamin propõe sua própria definição de capitalismo.
Para Benjamin, o capitalismo deve ser visto como uma religião porque está a serviço das mesmas preocupações e aflições que as religiões anteriores quiserem oferecer respostas. Indo mais além de Weber, Benjamin não entende o capitalismo apenas como um fenômeno condicionado pela religião, mas sendo o capitalismo mesmo uma religião. E, como tal, tem suas características próprias.
São quatro os traços que definem a “estrutura religiosa do capitalismo”, de acordo com Benjamin:
1) o capitalismo é uma religião cultual, e, neste sentido, não tem dogmática, nem teologia, “todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto”;
2) o capitalismo tem no culto uma duração permanente, sendo ele mesmo a celebração de um culto, assim, para o capitalismo “não existe ‘dias normais’, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do adorador”;
3) e o culto capitalista é culpabilizador, o que faz com que Benjamin chegue também a dizer que o “capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador.”;
4) por último, o quarto traço dado por Benjamin é mais hermético, trata-se do fato de que o Deus do capitalismo perdeu a transcendência, mas não morreu, apenas “precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura”;
Neste tempo de capitalismo como religião, é possível dizer, então, que, em vez de expurgar nossa culpa, ou melhor, nossa dívida – em alemão culpa e dívida possuem a mesma palavra, Schuld –, o capitalismo é o culto diário que só faz aumentá-las. Neste sentido, o capitalismo é, além de culpabilizador, também endividador. Assim, para Benjamin, “a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfacelamento.”.
Em entrevista à Peppe Salvà, publicada por Ragusa News, em 2012, Giorgio Agamben interpreta o famoso texto de Benjamin, acrescentando mais um sentido para a noção de que na religião capitalista “Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo.”.
Depois de trazer Benjamin e Agamben a este ensaio, talvez seja possível agora responder às questões deste texto e por uma hipótese não muito difícil de se inferir: o dia santo da Sexta-feira Negra, o Blackfriday, é o dia de culto da religião capitalista, que tem como seu deus o Dinheiro. Mas não se trata de um culto redentor, expiador. Blackfriday é um culto para aumentar a dívida de seus fiéis.
Contrariando Zarathustra, se Deus não morreu, mas se tornou Dinheiro, as igrejas, bancos, a fé, o crédito, então a Blackfriday é este momento ritualístico no qual, sem a devida percepção, a salvação jamais será de si mesmo ou de sua comunidade, mas, sim, a salvação do governo (oikonomía) do seu deus-Dinheiro. Salvação em que o sacrifício não tem fim. Um sacrifício que não é o do Cordeiro de Deus – quem teria encerrado todos os rituais expiatórios, como defendia René Girard –, mas o sacrifício de seus próprios fiéis, superendividados, que vivem a forma de vida da sua religião materialista: o consumismo sem perdão de suas culpas, de suas dívidas.