Bemdito

Brasil, onde os ‘matáveis’ padecem por falta de vacina

Negacionismo, negligência e incapacidade mental de Bolsonaro despertaram o fenômeno dos matáveis da Covid
POR Thiago Paiva

Negacionismo, negligência e incapacidade mental de Bolsonaro despertaram o fenômeno dos matáveis da Covid

Thiago Paiva
r.thiagoo@gmail.com

Mais de um ano se passou desde a primeira morte em decorrência do novo coronavírus no Brasil. Daquele 12 de março de 2020 até hoje, pelo menos 415 mil óbitos foram registrados no País, conforme estatística do consórcio dos veículos de imprensa nacionais – já que, absurdamente, o Ministério da Saúde cerceia essas informações. E, mesmo diante dessa tragédia, ainda há quem desacredite não somente o vírus e os números, como também as vidas ceifadas. “Só se morre de Covid no Brasil agora?”. Fiz uma reflexão sobre esse questionamento e concluí que há certo fundamento.

A desconfiança, que persiste há meses, passou a fazer sentido mais recentemente, sobretudo se considerarmos o tempo e a forma rasa com que a causa das mortes é apontada. É que, “agora”, no Brasil, as pessoas não morrem somente e meramente em razão do acometimento pelo vírus. A causa é outra, e merecia constar no atestado de óbito, feito cobrança daquelas que martelam a cabeça em noites sem sono: morte decorrente da falta de vacina.

Desde o fim de 2020, os brasileiros padecem pela negligência e pelas recusas anteriores do Governo Federal às ofertas de vacinas. A doença existia. A cura passou a existir. Porém, no intervalo entre uma e outra, havia um entrave proposital chamado Bolsonaro. Não vou entrar em detalhes quanto à política de negacionismo genocida adotada pelo Planalto, ou sobre as demonstrações de que o presidente da República é indigno do cargo que ocupa. Até porque nunca houve demonstração de dignidade.

CPF cancelado e os matáveis
Escrevo hoje para me ater a um fato recente que, mais uma vez, escancarou a falta de zelo, postura e empatia de Bolsonaro com os milhares de mortos nesta pandemia. No País dos “matáveis” pela violência urbana, onde são naturalizadas as execuções de um tio e sobrinho, flagrados furtando peças de carne e entregues por seguranças de um supermercado a traficantes, para serem torturados e mortos, o presidente foi a um programa de TV – em Manaus, e esse destaque dispensa comentários – e concedeu uma entrevista, em rede nacional.

Por cerca de 40 minutos, Bolsonaro fez piadas, sorriu, criticou o uso de máscaras e as medidas de distanciamento e isolamento social. Depois fazer tudo o que não deveria, ao lado de apoiadores, posou com uma placa: “CPF cancelado”. A gíria, geralmente usada em um contexto de letalidade por intervenção policial, seja ela legítima ou não, é também difundida para comunicar a morte de um indivíduo, vítima de grupos de extermínio ou facções criminosas. Para além deste público, a expressão também faz parte do linguajar chulo dos demagógicos ditos “cidadãos de bem”.

É estarrecedor que, enquanto milhões de brasileiros enfrentam a pandemia e a fome, o presidente se comporte de tal maneira, ainda que essa postura seja habitual por parte dele. E foi justamente esse comportamento de negacionismo e negligência, além da incapacidade mental de Bolsonaro, que despertou o fenômeno dos “matáveis” da Covid, adotado por seus seguidores, adeptos do CPF cancelado.

Assim, o mesmo desprezo aplicado aos matáveis da violência, em sua maioria negros, pobres, moradores da periferia e submetidos à vulnerabilidade social, agora se aplica às vítimas da Covid. O comportamento, que extrapola a indiferença, é semelhante nos dois casos também pelas elevadas estatísticas: os índices de homicídios continuam alarmantes no País, mesmo lugar onde os cidadãos agora podem portar inúmeras armas e até fuzis.

Há somente um detalhe importante nesse paralelo: quanto à pandemia da violência urbana, dificilmente as vítimas são “pontos fora da curva”, ou indivíduos não matáveis. Quando isso acontece, setores abastados da sociedade costumam se apavorar. Apregoam a segurança a qualquer custo, a repressão. A naturalização da morte dos matáveis não aceita variações.

Já na pandemia da Covid-19, o vírus não faz distinção de vítimas. Somente os tolos acreditam na falácia do “histórico de atleta”. E, infelizmente, no Brasil de Bolsonaro, o negacionismo ainda matará milhares de brasileiros, não somente pela ação do vírus, mas pela omissão do presidente, traduzida na falta de vacinas. Para Bolsonaro, normal. Serão apenas novos CPFs cancelados.

Thiago Paiva é jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário. Está no Instagram e Twitter.

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.