Como é que se diz “eu te amo”?
“Como já foi dito:
O amor e a tosse
não podem ser disfarçados.
Nem mesmo uma pequena tosse.
Nem mesmo um pequeno amor.”
(Anne Sexton)
A pergunta que dá título a este texto foi feita por Renato Russo, o poeta da minha infância, e sempre me pareceu muito grave e difícil de ser respondida. Camus afirmou que o suicídio era o único problema filosófico verdadeiramente sério. No entanto, me coloque para dar quatro horas de aula sobre suicídio e eu abordarei o assunto com desenvoltura e articulação, falando sobre Filosofia, Sociologia, Psicanálise. Provavelmente, se me fosse solicitado tempo de comunicação semelhante refletindo sobre a pergunta feita pelo Renato, eu me atrapalharia. Talvez soasse incerta e balbuciante.
Na mesma proporção em que escrevi obsessivamente ao longo da vida, evitei o amor romântico como tema de escrita. Tinha receio de parecer muito feminina na pior conotação que a palavra pode evocar: incapaz para o pensamento abstrato, excessivamente sentimental, inapta para os grandes temas da política, mais próxima da emoção do que da razão, nos termos que a cosmologia ocidental separou tão bem em uma de suas principais e mais perversas ficções. Só muito recentemente me dei conta de que tudo de mais canônico que li sobre amor foi, na verdade, escrito por homens. O amor é um grande tema em Platão, Shakespeare, nas epístolas paulinas, em Camões, em Dante Alighieri, em Goethe, em Chico, em Caetano…
Mesmo os contos de fadas, quem sabe a versão mais alegórica e kitsch do amor romântico, foram escritos por homens como Andersen e os Irmãos Grimm. Provavelmente, a despeito da repressão da vida sentimental que o aprendizado da masculinidade impõe, os homens estão tão ou mais interessados em uma conversa sobre amor quanto as mulheres. Porque todos nós queremos ser amados. E todos nós precisamos, ao longo da vida, aprender a amar.
Como tudo o que me parecia misterioso e obscuro, fui atrás de respostas sobre a questão amorosa nos livros. Não que o amor seja coisa que se aprenda apenas lendo sobre ele. Mas era preciso começar por algum lugar. Peço, portanto, que você, caro(a) leitor(a), seja caridoso com a minha provável inarticulação e aceite o meu convite para um passeio. Vamos fazer uma caminhada breve por algumas de minhas palavras favoritas sobre amor, escritas por gente capaz de abordar o assunto com muito mais agudeza sentimental que eu mesma. Como a G.H., de Clarice Lispector, peço que você segure a minha mão. Ajude-me a nascer.
Provavelmente, toda a minha liturgia pessoal sobre amor foi condensada por Roland Barthes em seu Fragmentos de um discurso amoroso. Minha edição foi comprada em sebo e hoje está bastante gasta e amarelada, tanto pelo trabalho do tempo antes de o livro ser o meu livro, quanto pelo manuseio excessivo, uma vez que sempre retorno para ele. Barthes escreve este texto como insurgência: afirma que o discurso amoroso hoje é de uma extrema solidão. Foi, na percepção do autor, depreciado, ironizado, excluído e ignorado.
E, para Barthes, quando um discurso é de tal maneira banido, resta a ele o lugar de uma afirmação. Apesar das dificuldades das histórias amorosas, das dúvidas, dos desesperos, da vontade de se livrar, Barthes não para de afirmar para si mesmo o amor como um valor. Contra todas as afirmações em torno de apagar, limitar, apontar o que não vai bem no amor, Barthes se opõe com obstinada teimosia, um protesto do amor: a voz do Intratável apaixonado.
No que tange às histórias de amor, uma de minhas preferidas está contida em um pequeno livrinho, curtíssimo, mais especificamente uma carta de amor. O livro se chama Carta a D. e foi escrito por André Gorz, um fenomenólogo francês, leitor de Merleau-Ponty, que nesta correspondência se dirige à sua esposa Dorine, após 58 anos de união.
Gorz abre a carta da seguinte maneira: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”. Com André Gorz e Dorine aprendi sobre a experiência amorosa como me interessa vivenciá-la: reflexiva, feita de muita cumplicidade intelectual, de muita partilha da vida interior e, ainda assim, não menos entregue e apaixonada.
Em se tratando, por outro lado, de coragem amorosa, há chance de a melhor injeção estar contida na peça teatral On ne badine pas avec l’amour, de Alfred Musset. Trata-se da história de Perdican e Camille (outra Camille, como eu), apaixonados desde a infância e obrigados a enfrentar uma série de desencontros, provocados tanto pelos imponderáveis da vida, quanto pelas falhas implicadas em suas próprias escolhas e caráter.
Em determinado ponto, Perdican diz à Camille, em tradução livre: “Muitas vezes somos prejudicados no amor. Somos feridos, ou damos azar. Mas nós amamos! E, da beirada do túmulo, alguém se vira para olhar para o passado, e diz: ‘Eu sofri bastante. Eu errei algumas vezes. Mas eu amei!’.”. Vale a pena a vulnerabilidade. Vale a pena a cicatriz. As lágrimas. Porque só um vivo é capaz disto. É preciso não morrer e acabar descobrindo que não se viveu.
Para finalizar nosso passeio, gostaria de retomar as palavras de dois poetas, porque talvez na poesia resida o melhor e mais livre terreno da investigação amorosa. A primeira é a polonesa Wislawa Szymborska, que, em um de seus versos, escreve que o amor feliz ofende a justiça, derruba os cumes da moral, que é um escândalo nas mais altas esferas da vida. E provoca: “Os que não conhecem o amor feliz que afirmem não existir em lugar nenhum um amor feliz. Com essa crença lhes será mais fácil viver e morrer”.
Borges, por sua vez, em um poema intitulado Auto-socorro, oferece para a pessoa amada aquilo que possui de mais puro e bem guardado. Diz ele: “Eu te ofereço aquele núcleo de mim mesmo que de algum jeito salvei – o coração central que lida não com palavras, negocia não com sonhos e é intocado pelo tempo, pela alegria, pelas adversidades”.
Como é que se diz “eu te amo”? é a interrogação deixada por Renato, que, se não tinha todas as respostas certas, sabia como ninguém fazer as perguntas certas. Todos os dias sigo aprendendo novas formas de dizê-lo e intuo que responder a pergunta do líder da Legião Urbana é trabalho para uma vida. Mas sei – isto eu sei com certeza – que amor não é trabalho para covardes. É missão feita para os sonhadores, para os bêbados, para os palhaços, para os errantes, para os loucos, para os bravos, para os fortes. Para gente que, assim como Neruda, quando perguntado se já havia sofrido muito por amor, é capaz de responder: “estou disposto a sofrer mais”.
Este texto é minha felicitação de Dia dos Namorados para os leitores do Bemdito. Desejo Feliz Dia dos Namorados para quem ama em um relacionamento. Para quem, neste exato momento, está com o coração partido. Para quem ama sem ser correspondido. Para quem ama em silêncio, platonicamente. Para quem perdeu um amor, porque a vida é cruel e o interditou por algum motivo. Para quem ama errando e acertando. Para quem ama porque não consegue fazer outra coisa. Desejo Feliz Dia dos Namorados para que vocês não endureçam o próprio coração. Porque amor é coisa muito rara e muito preciosa. A gente o inventou para vencer a morte. E ele vence. A gente vence.