Bemdito

Da menina baiana aos podres poderes na ONU

A dificuldade de se manter otimista quando tudo ao nosso redor parece sórdido
POR Cláudio Sena
(Foto: Divulgação)

Neste semana, como forma de vídeo-resposta à viagem da comitiva presidencial do Brasil à 76ª Assembleia Geral da ONU, dezenas de pessoas compartilharam um registro de Gilberto Gil fazendo jam session com Kofi Annan tocando tambor em uma edição passada do mesmo evento. Reparem na música. Não foi hino, Bella Ciao, A Internacional, nem samba. “Toda Menina Baiana”, acredite. Deixa eu lembrar um trechinho: 

Que Deus entendeu de dar a primazia
Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia
Primeira missa, primeiro índio abatido também
Que Deus deu

Tenho a impressão de que este Deus da música não é o mesmo do lema do Governo Federal. Enfim, sigamos a linha de raciocínio. Junto ao vídeo, legendas na linha “já fomos assim”, “saudade” e outras evocações de um passado recente, convenhamos, bem menos bronco. Sabe o que podemos concluir desta comparação: não somos estáveis. Nada é, tudo está.

Basta uma política de estado equivocada e maliciosa, um burnout inesperado, um peteleco das forças naturais, pronto, lá se vão causas, coisas e casas. Seja o prazer das pequenas atividades extirpado sem explicação ou magma vulcânico engolindo concreto, algo vai mudar. Isso é quase certo. Para o sábio Michel Serres, que mantinha fala serena durante suas sínteses sobre a vida, as sociabilidades, os indivíduos, as evoluções e involuções, marcas do tempo histórico, a transformação é a padrão: 

“Não tenho certeza que a natureza humana é estável. Nós mudamos muito desde os egípcios, desde os antigos chineses, dos índios da América e de nossas origens africanas. E mudamos muito também desde o século 17 e das grandes navegações. Consequentemente, nossa mudança é quase a definição do ser humano. Não há natureza estável, o ser humano muda muito. Graças à cultura e à história. Somos um animal curioso, um animal de mudanças.” 

Em outras conjecturas e publicações, o filósofo até arrisca dizer que as coisas melhoraram nas últimas décadas, sobretudo se comparadas aos tempos das grandes guerras e dos últimos genocídios. Aí eu já não sei. Quando vejo o policial da cavalaria das fronteiras norte-americanas laçando um desesperado imigrante haitiano ou as meninas afegãs proibidas de frequentar aulas no “novo” Emirado Islâmico do Afeganistão, fica tão difícil crer na melhora. Observando estas bandas brasileiras, já não mais formadas por Gil, Tins e Bens e tais, impregnadas de ódio, recorro a outro Doce Bárbaro e termino o texto com pedacinho de música que serve de questionamento:

Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.