Bemdito

Dispositivo, profanação e o direito que vem

Compreender o conceito de dispositivo para, em seguida, profaná-lo
POR Ricardo Evandro
Detalhe da Santíssima Trindade de Andrei Rublev

Em 2005, Giorgio Agamben fez diversas conferências no Brasil. Em uma delas, chamada O que é um dispositivo? (2005), o filósofo italiano se propôs a interpretar o conceito de dispositivo em Michel Foucault. Em verdade, a proposta de Agamben foi a de fazer um exercício genealógico sobre o famoso conceito foucaultiano, que aparece em Microfísica do poder (1979)Só que ele tentou ir mais a fundo na tarefa genealógica, chegando à descoberta da origem teológica do famoso conceito.

Segundo Agamben, a questão do dispositivo envolve uma discussão em torno do pensamento secularizado de Hegel acerca da oposição entre Espírito e mundo. Assim, o fio condutor aqui não está oculto: dispositivo é um conceito de raiz teológica e é pela teologia que tal conceito pode ser melhor compreendido e, até mesmo, confrontado, ainda que por uma analogia, como veremos ao fim deste texto. Mas, antes de tudo, é preciso dizer que Hegel não pode ser seu ponto inicial. Ao contrário, Hegel é o início secular dos fundamentos do uso do termo dispositivo feito por Foucault. Mas, então, de onde surgiu esta concepção de dispositivo na teologia?

O “mais a fundo” ao qual Agamben chegou está no encontro com a primeira vez com que o termo latino dispositio teria sido usado. Segundo o filósofo italiano, a palavra é a tradução para o latim do termo grego oikonomía. Mais do que a origem da palavra “economia” em português, esses termos, grego e latino, que são correspondentes, referem-se à uma discussão muito importante na tradição católica: a questão da trindade. Em outros termos, Agamben está nos dizendo que aquilo que opera de fundo à palavra “dispositivo” é a tarefa de economia, de administração, controle, enquanto sendo o encargo próprio de uma das partes da tríade divina, da trindade.

Conforme propôs Agamben, o dispositivo pode ser melhor compreendido quando se puder resgatar, portanto, o seu fundo teológico, que se remete à antiga discussão sobre a trindade e a função de Cristo enquanto filho de Deus. Sobre isso, sabemos que foi no século IV, com o Concílio de Niceia, no ano de 325 d.C, que se estabeleceu na Igreja, a despeito das teses arianas, a institucionalização da noção de que Cristo é filho de Deus, mas também é o próprio Deus.

O ponto principal aqui é que Ele é homem, mas também Deus. Pois Jesus não teria sido criado, mas gerado.  Assim, diz Agamben, mesmo sendo “um” com o Criador, Cristo tem a dimensão que lhe é própria: a de ser o administrador do destino, da providência. Cristo é governador da história dos seres humanos. Desse jeito, resta a Deus “ser”, enquanto Cristo só “agiria” como administrador da vida humana no mundo temporal, agente de sacralização, conversão dos seres humanos ao sumo Bem, a Deus.

A partir disso, é possível ver que Agamben faz aqui uma incrível descoberta sobre uma possível origem da separação tradicional na filosofia entre teoria e prática, entre ser e agir. Pois, o dispositivo, neste sentido, o de economia, administração crística sobre nossas vidas, apesar de se encontrar com Deus na Trindade, ao mesmo tempo, também está cindido de seu fundamento ontológico, teorético — representado por Deus-pai.

Em verdade, desde a discussão sobre a Trindade, as ideias de controle, vigilância e administração, as quais formam também o sentido de dispositivo, já desde a Cristandade possuem o sentido de prática em alguma medida cindida da unidade com seu fundamento teorético, ontológico, representado pelo Deus-pai. Pois, com a cisão entre Deus e Cristo, separados por suas funções na Trindade, analogamente o ser e a teoria estariam cindidos do agir, da prática, da administração. 

É dessa forma, portanto, que Cristo, na função econômica, administrativa, do dispositivo é aquele que age sobre os humanos para reconectá-los ao Pai. Como disse, é a prática de origem religiosa sobre a liberdade humana para sacralizá-la. E é daqui que Agamben parte para estabelecer não só a relação entre o conceito de Foucault e a noção teológico-política de oikonomia cristã, mas também para estabelecer a sua proposta contra o poder, contra este controle do dispositivo sobre nossas vidas. Sua ética não poderia deixar de ter tal analogia teológica, pois, livrar-se do subjugo de um dispositivo, então, seria a própria tarefa de “descaptura”, de dessacralização, que se dá por meio de uma atitude “profana”, ou melhor, por ato de profanação.

O que é preciso ser entendido é que Agamben estabelece a seguinte classificação: que, no mundo, existem os dispositivos e os seres viventes. O sujeito humano, enquanto ser vivente, apenas surge enquanto produto do dispositivo, da ação dispositiva sobre o ser humano, que em verdade o tornou “humano”. Ou ainda, por exemplo, o caso do Direito, que é dispositivo de controle e também produtor de personalidade jurídica — o Direito nos faz sujeitos de direito. Assim, os dispositivos funcionam como máquinas sobre nossos corpos. Do mesmo modo que a religião nos batiza, analogamente, a rede de discursos, de poder, de edifícios, estrategicamente estabelecidos, isto é, o dispositivo, age sobre nossa liberdade, tornando-nos corpos dóceis, capturados por discursos e por instituições. 

Desse jeito, Agamben passa a refletir sobre um meio de nos livrarmos dessa máquina produtora de sujeitos subjugados. E a analogia que ele faz sobre essa questão segue sua genealogia do conceito de dispositivo, a qual encontra na teologia política uma proposta de saída, de crítica e de emancipação. Pois, se assim como a religião, o dispositivo nos produz, capturando nossa liberdade, nossa potência de vida, redirecionando-a ao bem pela ação administrativa de quem governa a providência, tornando-nos sacros, resta, então, fazer o movimento contrário: o da profanação, da “descapturação” da vida.

Assim, quem sabe a antiga e atual cisão entre ser e agir, entre teoria e prática, também fundada, ou mesmo reabilitada, nas discussões sobre a trindade nos séculos III e IV d.C., não possa reconciliar ontologia e política, mas agora pela ordem do “profano” e pelo que “pode vir”, pelo que pode sobreviver ao juízo final, isto é, à destituição de tudo aquilo que “retém” a deposição das ordens jurídica e econômica vigentes — a vinda, ou retorno, do verdadeiro messias.

Em outros termos, a tarefa aqui, pelo menos quanto ao Direito, é pensá-lo fora das diretrizes do “sujeito de direito” produzido pela norma jurídica. É pensar fora do parâmetro do Soberano que “inclui e exclui” nossa cidadania, que precisa estar em exceção permanente para se manter no poder. A tarefa é a de pensar a sociedade, o governo, o Estado e o Direito pelo que ainda não foi feito; quando e onde a vida não seja mera vida sobrevivente.

E que vida outra poderia ser esta? Talvez a vida “vivida” fora do esquema interpretativo que é o Direito ou, ainda, fora dos processos de reconhecimento de fatos sociais como jurídicos.

Talvez a saída seja pensar uma comunidade e um Direito ainda por virem. Um Direito que vem, fora das categorias tradicionais; e uma vida comum não sujeitada, tampouco reificada. Como uma outra “forma de vida” possível.  

É possível? E aqui, na Terra, no Brasil, bem aqui? E, hoje, agora mesmo, neste segundo?

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.