Bemdito

Histórias afetivas para não fundar desertos

Entre o real e a ficção: a narrativa possível na era das telas
POR Ana Eduarda Diehl

Fiquei pensando que seria interessante fazer uma crítica à aceleração de áudios do WhatsApp. Desde então, cultivo um medo imenso de ser prolixa nas palavras, de hesitar no sentimento e de ultrapassar dois minutos, no momento em que o coração sai pela boca. 

Deixo a reflexão com os sociólogos. A mim, soa estranho falar das coisas como se não padecesse do mundo. 

Outro dia, comecei uma prosa com um sujeito interessante, a quem eu havia conhecido muitos anos atrás. O falecido Facebook lembrou que tentamos um encontro, e isso e aquilo, mas o Rio de Janeiro é uma cidade de palavra purpurina: vai com o vento. 

Nós tentamos, mas não aconteceu. 

Dez anos depois, voltamos a nos falar. Ele pergunta se o meu passo é largo ou miudinho, e eu gosto da provocação. 

Já corri o mundo como se fosse questão de fome. Paralisei de medo e caminhei mansinho com as pernas bambas na travessia do luto. 

Fome demais esburaca a gente. 

Se as telas fazem parte deste mundo que me encontro, não me interessam as críticas objetivas demais. Uma pena não viver no tempo das cartas, mas pairar num mundo em desencanto. 

Psicanalistas e sociólogos analisam nossa subjetividade e a questão da evitabilidade nas relações contemporâneas. Isso importa, mas não me interessa. 

Brindo a todos os corajosos que se casaram pelo Tinder. Que se apaixonaram por uma imagem, que passaram das fotografias às videochamadas. Que sentiram a ansiedade dos intervalos e se renderam a qualquer coisa de ridículo. 

Uma história que começa com “nos conhecemos pelo aplicativo”, certamente, não rende uma boa narrativa. Não é como contar que um dia se andava distraída em estado de graça, as chaves caíram no chão e o estranho que as devolveu emendou um assunto no outro. 

Acaso os algoritmos nos afastaram das sincronias da vida? 
Não me lembro da última vez em que fui tomada pelo espanto do mistério, e este é um tempo da regência de máquinas, dos áudios acelerados, do descarte dos mais velhos. 

Mas reduzir o mundo ao seu deserto tampouco me parece uma boa opção. Me lembro do historiador que anunciou o fim da história depois da queda do muro de Berlim. Seria preciso muita imaginação para conceber que, no século seguinte, perderíamos algumas guerras para os seres microscópicos: vírus, bactérias, protozoários, somados a um pequeno tirano facínora e tosco. Um esforço equivalente seria o de imaginar que a alegria também brotava de terra arrasada. Em algum momento, sonhou-se um país diferente no qual a vida milagrosamente parecia mais possível. O fosso havia encurtado junto com a distância da miragem. 

Mas a miséria e a fé não se anulam. Elas apenas existem enquanto histórias possíveis em tempos diferentes. Elas coexistem, e por isso mesmo as histórias não devem se reduzir a nada, sob o risco de incorrermos na pobreza imaginativa.

As grandes narrativas da aceleração e da extinção da delicadeza não criam outras histórias, tampouco contemplam nuances que nos dizem que ser gente é muito, muito complexo. Para me fazer clara, recorro à narrativa, nessa tentativa vaga de adiar os fins.

Ele tinha 24, ela, 23. As conversas pelo aparelho eram sobre tudo e também sobre nada. Não se conheciam pessoalmente, pois estavam separados por 600 km e pela doença que se alastrava como os tiranos. Era um país triste 

e aos jovens eram designados estranhos trabalhos por aplicativos 
experiência de consumidor
marketing disso 
daquilo 
UX writer, UI designer, design thinking, 
Zuckemberhg era um americano astuto de sobrenome alemão 
e a isso se somavam oito horas no computador para resolver questões virtuais de uma empresa canadense sem sede física. 

De noite se distraiam um com o outro, ainda que não tivessem muito assunto porque aos dias não restavam grandes acontecimentos 

Nem sempre a conversa seguia um fio da meada, de modo que um assunto emendasse no outro sem dar sentido ao anterior. E por acaso estar à toa não é como isso? 

Ela sentiu que aquele meme havia sido uma demonstração de afeto indireta e se arrumou para uma videochamada depois do trabalho. Falavam das coisas que assistiam, tratavam os gatos como crianças 
porque eram as únicas criaturas a quem dar afeto dentro de uma margem minimamente segura. 

Ela era de Araraquara e ele, de Londrina, cidades medianas sem muita graça ou tempero, e já tinha dois anos que não sabiam o que era uma língua com sabor alheio. 

Quando se encontraram na rodoviária, estranharam o encontro do beijo melindroso, muito rápido, 
e desacostumado ao repouso. 

Foram sem assunto do carro até a casa 

e falar sobre o tempo já não era mais tão natural 
no momento em que o tempo pesava mais que de costume.

Ele se surpreendeu com a estatura dela 
justo agora que tudo era tão possível 
nada mais se assemelhava 

Se despiram como era esperado 
e ela chorosa pediu para que não, não daquele jeito 
e ficaram em silêncio porque nada mais a ser dito 

até que ela se deitou em seu braço
como uma renúncia de tanto querer 
e por ali seguiram até se abraçar 

até que houvesse alguma linguagem possível a dois.

Ana Eduarda Diehl

Ana Eduarda Diehl é uma espécie de antropoeta. Curitibana, é mestranda e desenvolve projetos culturais na intersecção entre memória, escuta e escrita.